A PESQUISA LITERÁRIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIAS


Por Yasmin Nadaf


Construímos este texto para os pesquisadores da literatura

Inicialmente é necessário enfatizarmos que os cinco projetos de nossa autoria que apresentamos a seguir convergem nos seguintes pontos:

 

1º) Todos eles estão vinculados há uma rede de Projetos desenvolvidos pelas Universidades brasileiras e estrangeiras com intuito de proporcionar novas descobertas nos “Estudos Literários”, e todos contribuíram (como veremos) para uma reescrita da História da Literatura.

2º) Todos eles estão ligados diretamente às propostas de pesquisas da ANPOLL (GT “Mulher e Literatura”, onde sou membro desde 1991).

3º) Em todos os projetos colocamos em circulação nomes e obras do passado no intuito de contribuir para a reescrita da História da Escrita e da Leitura no Brasil.

4º) Em todos os projetos divulgamos uma literatura pouco ou totalmente desconhecida da história literária universal oficial: a vida literária cotidiana, corriqueira, muitas vezes desprezada pela história oficial ditada por valores rígidos e limítrofes de composição. Uma tarefa que nos impõe realizar na atual e necessária reavaliação do movimento de idéias literárias.

5º) Os estudos resultam de uma exaustiva “escavação arqueológica” em arquivos e bibliotecas públicas e de particulares, na busca de periódicos, revistas literárias, manuscritos, dicionários entre outros instrumentos que me permitissem os resgates efetuados. Falo isso, para lembrar aqui da importância e do compromisso que devemos ter com a preservação das nossas fontes porque sem elas não há como realizarmos buscas de conhecimento, hoje do passado, amanhã daquilo que hoje é o presente.

6º) As nossas pesquisas e livros têm servido como ponto de partida ou referência para o aparecimento de muitas teses, no âmbito das universidades, e espero que elas possam também abrir caminhos para os futuros pesquisadores, como vocês.

 

Título: A Violeta – órgão do Grêmio Literário Júlia Lopes (Mato Grosso, 1916 a 1950)

Instituição: UNESP (Universidade Estadual Paulista)

Bolsa de Fomento: CAPES

Período: 1989 a 1993

OBJETIVOS:

Resgatar, catalogar e analisar a coleção de A Violeta, uma revista, criada e dirigida por um grupo de mulheres de Mato Grosso, e que segundo dados de nossa pesquisa circulou de 1916 a 1950.

Mapear as escritoras mato-grossenses, da 1ª metade do século XX, até então excluídas da história oficial, e acesso a sua escrita.

ALGUNS DOS RESULTADOS OBTIDOS:

1º) Catalogação de 309 exemplares da revista, que encontramos armazenados na Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, e que incluiu o período de dezembro de 1916 a março de 1950.

Essa catalogação nos permite afirmar de início que em termos de longevidade A Violeta ocupa o 2ª lugar na lista dos periódicos escritos e dirigidos por mulheres no Brasil, perdendo apenas para O Corymbo, jornal publicado no Rio Grande do Sul, no longo período de 1883 a 1944, e editado pelas irmãs Julieta de Melo Monteiro e Revocata Heloísa de Melo.

2º) Mapeamento das escritoras mato-grossenses, e acesso a sua escrita, permitindo-nos afirmar que no tocante à produção literária, elas seguiram os cânones do Movimento Literário Romântico no Brasil, em seus diversificados grupos do século XIX. Não custa observar que fato semelhante – esta espécie de romantismo tardio e anacrônico - ocorreu também com escritoras de outras regiões, pois eram enormes os preconceitos que cerceavam a vida das mulheres e inúmeras as limitações da educação a que tinham acesso.

3º) Constatação de que pelo prestígio que teve e pelo longo período que circulou, A Violeta armazena o mais legítimo e significativo volume da escrita de autoria feminina na região, revelando, como conseqüência, parte acentuada do universo feminino do passado. Resgatando e divulgando seus escritos acreditamos estar desvendando não só o modo como essas mulheres se retratavam (a si e aos outros), como a forma de sua inserção no contexto social originário.

4º) Descoberta de que a revista feminina mato-grossense seguiu o modelo da imprensa feminina que se publicou em outras cidades brasileiras, A Violeta de Mato Grosso variou em seus temas. Não falou só de flores às quais nos remete o seu título de batismo. Tampouco só da literatura se ocupou, o que nos impossibilita enquadrá-la numa linha de periódicos exclusivamente literários. Seus assuntos se estenderam a política, a história, ao feminismo, a moda para a mulher, a culinária, a campanhas educativas, de higiene e de saúde, a registros da sociedade mato-grossense, etc. Seu ecletismo temático foi tamanho que levou a revista à ambigüidade: de um lado o individualismo, o amor subjetivo, o culto à beleza da natureza, as flores, o luar, o pôr-do-sol, e de outro, o desejo de solidariedade, o amor à pátria, as lutas pelo progresso da região de Mato Grosso e pela educação e profissionalização da mulher. Isolou-se do real com signos como o da flor, e ao mesmo tempo dele se aproximou quando falou do Progresso, da Civilização e da Modernidade, que englobam a cultura, a educação, o saneamento, a comunicação, o transporte, a saúde, a realidade circundante.

5º) Revisionismo de atitudes preconceituosas que relegaram as essas mulheres seus nomes a um espaço de penumbra, combatendo a falsa idéia de que as mulheres não participaram como agentes produtores da vida cultural do passado.

6º) Acesso à vida literária da época: Saraus literários, incluindo o sarau do Grêmio intitulado “A Violeta falada”, entre outros encontros literários vinculados a campanhas de assistencialismo, de saúde, de política progressista para o Estado.

A revista divulgava a produção de homens e mulheres de letras da região e mantinha intercâmbio profícuo com homens e mulheres de letras de outros Estados, permitindo-nos desvendar uma rede de relações culturais entre Mato Grosso e outras regiões – (os escritores vão compondo a famosa rede de sociabilidade sistêmica e literária).

Dentro desse contexto, constatamos ainda que os escritores e intelectuais de outros territórios extrapolaram a visão do Brasil cosmopolita e periférico da 1ª metade do século XX, quando havia uma acentuada tendência das regiões isoladas geograficamente se voltarem para os grandes centros do País, com relevo para o eixo Rio-São Paulo. O intercâmbio aqui ocorria também entre regiões periféricas.

 

Título: A Escrita da Mulher em Mato Grosso – Imprensa e Literatura – Séculos XIX e XX

Instituição: UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) – Núcleo de Documentação e Informação Histórica e Regional

Período: 1994 a 1997

OBJETIVOS:

Recuperar e divulgar a literatura feita por mulheres em Mato Grosso, de suas primeiras manifestações à contemporaneidade, assinalando autoras, obras, fases literárias, e suas inter-relações na vida literária feminina regional, nacional e estrangeira.

ALGUNS DOS RESULTADOS OBTIDOS:

1º) Sustentação da tese de que a mulher da região deixou rastros na história da escrita, no século XIX, e uma fecunda produção, no século XX.

2º) Constatação da intensa participação da mulher na imprensa local do século XX.

3º) Indicação dos nomes de escritoras que ilustram as letras do Estado, permitindo-nos acompanhar a trajetória das mulheres na construção de uma identidade e de uma escrita literária. Acompanha esse levantamento a relação bibliográfica e iconográfica dessas escritoras.

4º) Apresentação de autoras (nascidas ou residentes na região) e suas obras até então desconhecidas pela história oficial, fazendo justiça aos seus escritos e ao público leitor que passa a desfrutar de um novo manancial.

5º) Conhecimento dos gêneros e da estética literária produzidos por essas escritoras.

6º) Constatação do intenso intercâmbio cultural e literário que essas mulheres de letras estabeleceram na 1ª metade do século XX, com homens e mulheres de letras da região, de outros Estados e do estrangeiro.

 

Título: O Folhetim publicado nos jornais da França, do Rio de Janeiro e de Mato Grosso (Séculos XIX e XX)

Instituição: UNESP (Universidade Estadual Paulista)

Bolsa de Fomento: CNPq

Período: 1998 a 2001

OBJETIVOS:

Resgatar, catalogar e analisar do Folhetim (enquanto coluna de jornal, e gênero romance-folhetim) nos jornais da França, do Rio de Janeiro, e de Mato Grosso, com o objetivo de apontar o seu nascimento na França, seu aparecimento no Brasil e irradiação para as províncias, bem como as diferenças do gênero nas diversas geografias.

ALGUNS DOS RESULTADOS OBTIDOS:

1º) Catalogação de todo o Folhetim presente na Coleção do Jornal do Commercio e da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro – do começo da 2ª metade do século XIX ao final da 1ª metade do século XX.

2º) Catalogação de todo o Folhetim presente na imprensa mato-grossense (pesquisa feita em 125 títulos de jornais, relativos ao período de 1847 a 1969). Nesta extensa e variada coleção, localizamos o folhetim em 35 jornais das cidades de Cuiabá, Corumbá (hoje Mato Grosso do Sul), Cáceres e Poconé.

3º) Conhecimento da estética do romance-folhetim francês, e percurso histórico nos jornais da França, seu país de origem, e nos jornais do Rio de Janeiro, cidade que representava o núcleo intelectual do Brasil oitocentista.

O romance-folhetim para quem não conhece se valia da fórmula do continua amanhã ou continua num próximo número que a ficção em série proporcionava. Em termos técnicos, o “corte” do capítulo e a “sucessividade” na narrativa firmavam-se como os elementos básicos iniciais a serem atendidos para o êxito do gênero.

4º) Conhecimento da acolhida do Folhetim na imprensa carioca, bem como da assimilação dessa escrita pela ficção brasileira no mesmo período.

5º) Mapeamento dos caminhos do romance no Brasil, e da preferência dessa literatura pelo público leitor.

6º) Descoberta da transgressão no Folhetim dos jornais de Mato Grosso, e a indicação dos fatores responsáveis por essa transgressão. Neste ponto assinalamos que contrariando a preferência pela publicação do clássico romance-folhetim francês no rodapé, o ecletismo marca a ficção imprensa no folhetim dos jornais mato-grossenses.

No rodapé da nossa imprensa misturaram-se autores, uns clássicos, outros conhecidos, e outros até mesmo desconhecidos ou estreantes; gêneros narrativos diversos como o romance, a novela, o conto e o texto literário curto produzidos nos mais variados estilos – romantismo, ultra-romantismo, realismo e regionalismo – ora isolados, ora entrecruzados numa só narrativa.

O mesmo não se curvou ao sensacionalismo e à audiência conquistada através da ficção folhetinesca – tanto pela imprensa francesa quanto pela imprensa carioca –, respondendo com coerência e fidelidade à demanda da natureza de sua realidade circundante: os proprietários ou editores dos jornais, autores e leitores eram burgueses e viviam como tal, o catolicismo reinava como religião oficial e dominante, a sociedade culta impregnava-se das diretrizes do Movimento Romântico, mesmo depois que este deixou de ser moda, e a literatura oficial, nascida com autores militares, já trazia um estilo precursor do positivismo anterior ao seu aparecimento, e fortalecia-se com a propagação dessa corrente filosófica. Irmanado a essa conjuntura, o folhetim mato-grossense optou por uma escrita branda, recheada de amor romântico ou altruísta, fé, bondade, pureza, honestidade, ordem, dever, patriotismo, probidade, entre outras dóceis e utilitárias virtudes enumeradas, contrárias aos dramas frenéticos, tramas hábeis, farsas, mistérios, crimes, roubos e misérias exageradas, peculiares ao gênero folhetinesco francês. Priorizou a estética do sentimento, da moral, da religião e da História/Pátria, nas mais variadas formas de escrita assinaladas.

Seus valores repetem e fortalecem os princípios oficiais da “antiga ordem européia”, ao mesmo tempo em que reverberam o contexto da sociedade letrada local e espelham a imagem idealizada pelo poder público regional – Província, depois Estado, Igreja, e entidades culturais hegemônicas, Instituto Histórico de Mato Grosso e Centro Mato-grossense de Letras, que viviam em perfeita harmonia com as duas primeiras forças, desde as suas instalações nos anos de 1919 e 1921, respectivamente. No período em estudo, era sólida a coesão entre a elite culta, política e religiosa em Mato Grosso, notadamente na capital Cuiabá, de onde procede grande parte do instrumental histórico recuperado neste estudo. Esta coesão facilitou o intercâmbio de idéias que resultou na visão de mundo homogênea presente na escrita impressa no espaço em questão, tanto no que se refere aos textos compilados de outros autores, como daqueles oriundos dos produtores regionais. Os dirigentes dos jornais e autores locais pertenciam aos órgãos governamentais, políticos e religiosos, onde ocupavam funções variadas de destaque, e às citadas sociedades histórico-culturais.

7º) Constatação da existência de um volume excessivo da crônica de autores mato-grossenses, em detrimento a ficção escrita por esses autores.

8º) Conhecimento da vida literária em Mato Grosso, no período que se estende da 2ª metade do século XIX e 1ª metade do século XX. No período que circulou, o Folhetim entreteve, informou, educou, criou hábitos de leitura, formou autores, refinou costumes, ditou regras sociais, morais e religiosas, e fortaleceu a identidade regional.

A rede de autores mato-grossenses que publicaram no rodapé dos citados jornais realizou uma verdadeira “cruzada civilizatória” em prol da região.

 

Título: Novo Mundo – letras brasileiras e estrangeiras no sertão

Instituição: UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Bolsa de Fomento: FAPERJ

Período: 2004 a 2005

OBJETIVOS:

Resgatar, analisar e divulgar o periódico Novo Mundo que surgiu em 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial, na pequena cidade de Guiratinga, região de extração garimpeira em meio ao sertão de Mato Grosso, visando à fraternidade intelectual e humana e à difusão da cultura entre os povos das três Américas. Desapareceu possivelmente em 1954, e circulou em mais de cinqüenta países, recebendo a colaboração de escritores de Mato Grosso, de outros estados brasileiros e do estrangeiro, notadamente dos hispano-americanos.

ALGUNS DOS RESULTADOS OBTIDOS:

1º) Catalogação de 35 exemplares do jornal, editados entre dezembro de 1945 e agosto de 1953, cujo acervo pertence à família do editor-responsável pelo jornal Raimundo Maranhão Ayres.

Essa catalogação nos permite afirmar que em termos de Brasil, o Novo Mundo de Mato Grosso foi o único periódico na linha da busca da fraternidade e da pacificação universal.

2º) Descoberta de uma rede de relações homogênea – jornal e colaboradores – num universo de diferenças culturais, sociais, geográficas e lingüísticas, proporcionando o mapeamento de autores e obras. Colaboraram no jornal autores conhecidos e dos que se encontravam à margem da cultura e da literatura oficial desde que imbuídos da construção da palavra e de um universo cultural, humano e social sadios. O jornal recebeu vasta colaboração de escritores do país e do estrangeiro, notadamente dos hispano-americanos. Publicou os textos na língua original dos colaboradores. Assim, além do português, encontramos o espanhol, o francês, o italiano e o inglês, o que certamente proporcionou um diálogo legítimo entre os povos, valorizando a cultura de cada um deles.

3º) Acesso à estética preferencial dos seus colaboradores: o volume da produção assinada pelos autores nas páginas do jornal diversificou-se entre os escritos literários, produzidos nos estilos – Romantismo, Parnasianismo, Realismo e Modernismo (este sem as rupturas abruptas dos movimentos de vanguarda, e sim o Modernismo bem comportando da geração de 1945) – ora isolados, ora entrecruzados num só título, e os escritos não-literários, entre eles a crítica de literatura e de artes, e notícias ligadas à cultura e ao intercâmbio entre os povos. A poesia foi o gênero literário predominante, diante de uma presença inexpressiva de escritos em prosa. Fiel à linha editorial proposta pelo jornal, a fraternidade foi o tema central presente no conjunto da escrita analisada, e em torno dela aglutinou-se uma cadeia semântica sintetizada pelas palavras paz, amor, união, perdão, esperança, solidariedade, fé, liberdade, harmonia e igualdade social, tal como o seu significado ilustra.

Paralelamente ao tema da fraternidade, o amor romântico e lírico desfrutou de um espaço de relevo no mesmo jornal. Fez-se predominante no discurso literário, e tal como o primeiro foi abordado seguindo múltiplas direções. De um lado, a manifestação do amor apaixonado, realizado ou malogrado, do poeta, e, de outro, a expressão de seus sentimentos líricos diversos e de suas inquietações existenciais.

4º) Conhecimento da vida literária da época: o jornal não só divulgava a produção de homens e mulheres de letras da região como manteve intercâmbio profícuo com homens e mulheres de letras de outros Estados, e do estrangeiro permitindo-nos desvendar uma rede de relações culturais entre Mato Grosso e outras regiões.

Seus colaboradores, obreiros das letras e conscientes de uma necessária “cruzada” de paz, fraternidade e igualdade entre os povos, fizeram história e vida cultural e literária como missão. Para legitimar as suas ações, fundaram entidades variadas às quais se vinculavam, e contemplaram-se com títulos honoríficos também diversos, proclamando o possível círculo da utopia cultural. Se o cânone oficial não lhes consagrava, enalteciam-se entre si. Bastava haver a aceitação de seus escritos entre os membros do grupo para cumprirem com seriedade e notoriedade o seu papel.

Semelhante ao contexto que identificamos quando da pesquisa com A Violeta, constatamos que os escritores e intelectuais de outros territórios extrapolaram a visão do Brasil cosmopolita e periférico da 1ª metade do século XX, quando havia uma acentuada tendência das regiões isoladas geograficamente se voltarem para os grandes centros do País, com relevo para o eixo Rio-São Paulo. O intercâmbio aqui ocorria também entre regiões periféricas.

5º) Escrever a vida e obra do idealizador e diretor do jornal - escritor e jornalista Raimundo Maranhão Ayres (1914-1972), que, originário do Maranhão, rumou a oeste do país seguindo as pegadas de seus conterrâneos, e lá deixou um trabalho de valor inconteste. Ele chegou a pertencer a inúmeras entidades culturais e interamericanas e foi contemplado com distinções honoríficas nacionais e estrangeiras.

 

Título: Entre-aberto botão, entre-fechada rosa: uma leitura dos romances da “Coleção Menina e Moça”

Instituição: Anpoll (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística) no GT “Mulher e Literatura”

Período: 2008 a 2011

OBJETIVOS:

Resgatar e analisar as obras da Coleção Menina e Moça, buscando investigar: 1) O que os autores e editores da época recomendavam como “boa literatura”; 2) Que lições autores e editores pretendiam passar; 3) O que liam as nossas jovens na primeira metade do século XX. A recepção dessa escrita em seu tempo.

Sabe-se que com a procura cada vez mais acentuada de romances nos últimos decênios do século XIX e primeiros decênios do século XX, as editoras estabelecidas no Brasil buscavam traduzir romances estrangeiros de larga aceitação em seus países de origem, notadamente os de autores franceses e ingleses. Disso resultou o aparecimento de coleções de obras no mercado editorial do país, algumas direcionadas ao público feminino, como a “Coleção Menina e Moça” destinada a meninas de 06 aos 16 anos. Eram romances procedentes da tradicional Bibliothèque de Suzette, da França, e que a Livraria José Olympio Editora fez circular entre 1940 e 1960.

ALGUNS DOS RESULTADOS OBTIDOS:

1º) Recuperação de romances praticamente esquecidos como esses, buscando proporcionar-lhes um interesse atual por sua leitura.

2º) Consagrar a essa escrita uma leitura renovadora, além de demarcar a sua influência em “seu tempo”, papéis, aliás, que nos cabe na condução da rede literária sistêmica da atualidade.

3º) Constatação da acentuada procura por essa literatura devido à quantidade de obras que compõem a lista da referida Coleção – mais de 40 títulos – em variadas edições. Essa estatística impõe-nos ainda uma nova conclusão: a de que a “Coleção Menina e Moça” buscou cumprir o papel positivo de formar leitores, estimulando o hábito de leitura no Brasil da 1ª metade do século XX.

4º) Conhecimento da literatura preferida pelas nossas menininhas do passado: integram a “Coleção” livros escritos por diferentes autores, contando com pouco mais de 150 páginas de texto cada um, no formato 14,5 x 22,5 cm. Feitos para leitoras mirins apresentando a vida e a rotina de protagonistas também mirins, com histórias para encantar e prender a atenção não somente das meninas e jovens, como também dos adultos mães e avós que viveram na época que os romances foram traduzidos para o nosso idioma. Histórias muito bem narradas do ponto de vista estético: literariedade na dose certa. Linguagem clara, pinturas literárias sem exagero, enredos que prendem a atenção, aventuras com chá e bolinhos. Ações leves, algumas em sobressalto, mas divertidas. Novelos fechados discursivamente, respeitando-se a sequência de início, meio e fim, com direito a epílogo.

No enredo, o conteúdo é retratado tal como a vida os apresentava, sem exageros ou retórica. O sobrenatural, tão recorrente nos contos de fadas, dá lugar aqui às cenas da vida ao natural. Nesses títulos, apenas a Providência foi aceita, correspondendo à expectativa editorial. Um grande número de títulos apresenta envolventes histórias de crianças, umas trocadas, outras sequestradas, outras ainda perdidas do seio da família, entremeadas de fugas, naufrágios, roubos, incêndios, tempestades à moda dos romances a la Walter Scoot e Alexandre Dumas. Um segundo bloco de conteúdo muito explorado na série se ocupou de histórias de crianças pobres que, graças à Providência, passam a ter uma vida mais afortunada. Nesse ponto é importante assinalar que tanto no primeiro como no segundo bloco de conteúdo o “Final Feliz” é prerrogativa número um, seguindo a fórmula encantadora dos contos de fadas tradicionais, nos quais as crianças perdidas voltam para suas casas e viviam felizes para sempre ou as pobres meninas ou moças – desafortunadas da sorte material – encontram um mecenas nobre e rico, apadrinhando-as vida afora.

5º) Acesso ao conteúdo ideológico conservador-reacionário dessa literatura: No âmbito dos valores sentimentais, o destaque ficou por conta do amor familiar e aos semelhantes, do amor a Deus e da fé na citada Providência, seguidos, ainda, pelo carinho que se deve ter para com as flores e animais. No que concerne aos princípios morais, o teor de maior difusão se aglutinou na valorização da família, das virtudes e do trabalho. A virtude exaltada nos escritos coroou-se notadamente de manifestações de pureza, bondade, simplicidade e disposição para o exercício do bem. Em torno dos princípios sentimentais e morais de destaque, sobrevieram, ainda, o perdão e a caridade. A revezes, as atitudes pérfidas dividiram o mesmo espaço, cabendo-lhes, porém, castigos sem precedentes que serviram para reafirmar o princípio de que o Bem vence o Mal e o Mal será sempre castigado.

 

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A VIOLETA: ESCRITOS E COLABORADORES

 

Por Yasmin Nadaf


Este artigo foi apresentado no XI Encontro Nacional da Anpoll (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística), realizado na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, na data de 03/06/1996.

 

Quando se fala em imprensa periódica feminina em Mato Grosso no século XX, praticamente se fala em A Violeta, a única revista do gênero impressa na região, neste período. Lembramos aqui, que no século XIX, por volta do ano de 1897, um grupo de mulheres mato-grossenses fez circular o jornal O Jasmin que também se dedicava aos “interesses das senhoras”. Porém, a impossibilidade de localizarmos seus exemplares, até a presente data, nos permite apenas afirmar, com base nos dados extraídos de outros periódicos da época, que o mesmo atuou numa linha de emancipação feminina e educativa, e que foi dirigido por uma mulher, Leonor Galvão, não sendo possível o repasse de maiores informações a seu respeito.

A Violeta surgiu em Cuiabá, em dezembro de 1916. Foi uma revista criada, organizada e dirigida pelas mulheres de Mato Grosso, e pensada para elas, constituindo-se, assim, uma imprensa legitimadamente feminina. Seu aparecimento se deve a um grupo de jovens normalistas da “Escola Normal de Mato Grosso”, ligado a algumas senhoras e senhoritas simpatizantes da cultura, que instalaram, em novembro do mesmo ano, o Grêmio Literário “Júlia Lopes” para cultivo das “letras femininas e patrícias”, criando para divulgação a revista.

A revista do Grêmio Literário “Júlia Lopes” atravessou décadas, circulando mensalmente (1º foi bimensal - de 1916 a 1920), e possivelmente desapareceu em 1950 (o último exemplar localizado em nosso levantamento, data de 31 de março de 1950). O ecletismo marca a sua trajetória - variou na fachada, em cores e diagramações; no número de páginas, de 08 a 32; na direção, teve 04 redatoras, Maria Dimpina, Bernardina Rich, Mariana Póvoas e Benilde Moura; na composição de seus escritos, publicando contos, poemas, cartas, discursos, preceitos, artigos jornalísticos, etc.; e na expressão de seu pensamento, ora conservador e ora de progresso.

A Violeta foi heterogênea também na participação de seus colaboradores. Escritoras e escritores mato-grossenses, de outros Estados e do estrangeiro deram sua contribuição por vezes efetiva, por outras esporádica, a ela. Vejamos.

Constam da relação das escritoras mato-grossenses de participação assinalada em A Violeta os nomes de Amélia de Arruda Lobo, Ana Luiza Prado, Antídia Alves Coutinho, Benilde Moura, Maria Dimpina, Maria Ponce de Arruda e Maria Santos Costa. Ao lado dessas escritoras, cabe-nos também citar o nome de Constança Paes de Barros, Guilhermina de Figueiredo, Maria Alzira Alderet e Tereza Lobo, cuja participação na revista, apesar de efêmera, foi de grande valor. Estas e outras mulheres de Mato Grosso que colaboraram em A Violeta, exerceram, em sua maioria, a função do magistério e residiram nos mais variados pólos do Estado - Cuiabá, Campo Grande, hoje Capital de Mato Grosso do Sul, Corumbá, Araguaiana, Três Lagoas, etc. Muitas fizeram nessa revista a sua estréia nas letras, e se fixaram, através dela, na carreira jornalística e literária.

Como dissemos, A Violeta não limitou suas páginas apenas as escritoras mato-grossenses. Autores de reconhecido valor literário dentro da historiografia regional também deram a ela a sua contribuição. Destes registramos os nomes de Dom Aquino Correa, José de Mesquita, Lamartine Mendes, Otávio Cunha, e Raimundo Maranhão Aires, entre outros. Este último escritor, por exemplo, teve a façanha de fundar e dirigir o periódico literário Novo Mundo, da “Associação de Intercâmbio Cultural de Guiratinga”, na década de 40, que, segundo um dos seus redatores, o escritor João Antônio Neto, além de publicar seus textos em português, espanhol, francês, inglês, italiano, alemão e esperando, cobriu 77 países, da China à Índia, de Goa à Noroega, extendendo-se, na América, da Argentina ao Canadá.

De outras regiões do País, A Violeta, recebeu também colaborações. Desse grupo fizeram parte os escritores Júlia Lopes de Almeida e seu esposo Filinto, Floriano de Lemos, Júlia Cortines, Iveta Cunha Ribeiro, Elóra Póssolo Chaoul, Ibrantina Cardona, Gilka Machado, Jonatas Serrano, do Rio de Janeiro; Adalzira Bittencourt e Amália Cagnoto, de São Paulo; Lola de Oliveira e sua mãe Andradina, Alzira Freitas Taques, Hecilda Clark, Estela Brum e Átila Guterres Casses, do Rio Grande do Sul; Conde de Afonso Celso e Augusto Lima, de Minas Gerais; Domingos Félix de Souza, de Goiás; Augusto dos Anjos, da Paraíba; Coelho Neto, do Maranhão; Rosália Sandoval, de Alagoas, e Hermes Fontes, de Sergipe. Com muitos deles as redatoras de A Violeta trocaram correspondências e matérias literárias, chegando a publicar uma produção “Inédita” de alguns desses escritores, em suas páginas. E, para alargar ainda mais as suas fronteiras e fortalecer o seu intercâmbio cultural, a revista do Grêmio Literário “Júlia Lopes” publicou por certo período (1925 a 1929), uma página poética exclusiva a escritores latino-americanos, intitulada “Página Americana”. Nela imprimiram-se produções de Rubem Dario, Alfonsina Storni, Gabriela Mistral, Amado Nervo, Adolfo Becquer, Ricardo Rojas, e outros.

À exemplo da imprensa feminina que se publicou em outras cidades brasileiras, A Violeta de Mato Grosso variou também em seus temas. Não falou só de flores às quais nos remete o seu título de batismo. Tampouco só da literatura se ocupou, o que nos impossibilita enquadrá-la numa linha de periódicos exclusivamente literários. Seus assuntos se estenderam a política, a história, ao feminismo, a moda para a mulher, a culinária, a campanhas educativas, de higiene e de saúde, a registros da sociedade mato-grossense, etc. Seu ecletismo temático foi tamanho que levou a revista à ambiguidade: de um lado o individualismo, o amor subjetivo, o culto à beleza da natureza, as flores, o luar, o pôr-do-sol, e de outro, o desejo de solidariedade, o amor à pátria, as lutas pelo progresso da região de Mato Grosso e pela educação e profissionalização da mulher. Isolou-se do real com signos como o da flor, e ao mesmo tempo dele se aproximou quando falou do Progresso, da Civilização e da Modernidade, que englobam a cultura, a educação, o saneamento, a comunicação, o transporte, a saúde, a realidade circundante.

Na impossibilidade de expormos, aqui, todos os assuntos presentes em suas páginas, selecionamos alguns de maior incidência para uma rápida apresentação da riqueza de conteúdo que a revista oferece.

No que diz respeito a mulher, por exemplo, A Violeta lutou pelo seu direito à educação, ao voto, ao acesso a empregos públicos, diurnos e noturnos, ao seu engajamento na política e outras áreas. Para fortalecimento a essas campanhas a revista chegou a publicar o programa da “União de Classes Femininas do Brasil”, os fins da “Federação Brasileira pelo Progresso Feminino”, o estatuto da “União de Funcionárias Públicas” entre outros, demonstrando perfeita sintonia com o Movimento Feminista Nacional desencadeado nas primeiras décadas do século XX.

Nas lutas pelo Progresso de Mato Grosso, a revista deu ênfase a construção de uma Estrada de Ferro para o Norte do Estado. Publicou, por diversas vezes, que somente a locomotiva resolveria os principais problemas da região - a indústria, o povoamento do solo, a agricultura e o comércio. Outras preocupações com o sistema de comunicação em Mato Grosso, tais como a viabilização de estradas de rodagem, o incremento nos setores aéreo e fluvial, a demanda do transporte urbano coletivo e a instalação de linhas postais e telegráficas, também surgiram em suas páginas.

A linha ideológica progressista de A Violeta se ocupou ainda da publicação de uma vasta produção preocupada com a urbanização, o saneamento, o mercado imobiliário, a expansão da agricultura, indústria e comércio, a instalação e reestruturação de escolas e postos de saúde e a colonização para Mato Grosso.

Na área da saúde os seus artigos deram destaque para o saneamento para a cidade de Cuiabá, para a correta alimentação e para os cuidados que devem ser dispensados com a tuberculose, a febre tifóide, bem como preocupações médicas com relação as crianças e recém-nascidos.

Seus textos sobre a história registraram, somente para exemplificar, a fundação das cidades de Cuiabá e de Campo Grande, a “Queda da Bastilha”, a “Guerra do Paraguai”, a “Batalha do Riachuelo”, a “Retomada de Corumbá”, “O Combate do Alegre”, e a “Abolição”, a “Independência” e “Proclamação da República” no Brasil. E, seus textos cívicos censuraram as guerras, narraram episódios da 1ª e 2ª Guerra Mundiais, clamaram o amor à Pátria e a necessidade de defesa do solo, descreveram o perfil de heróis e heroínas nacionais como José Bonifácio, Deodoro da Fonseca, Maria Quitéria de Jesus e Soror Joana Angélica, numa demonstração evidente da preocupação com a construção de um sentimento nacionalista por parte dos colaboradores.

No tocante ao assistencialismo, A Violeta se ocupou em escrever sobre a importância do desenvolvimento de ações em benefício dos hospitais e igrejas da região. Lutou também pela construção de abrigos para velhos, crianças e leprosos desamparados; e desencadeou campanhas para obtenção de fundos para a Cruz Vermelha Portuguesa, em 1917, e a Cruz Vermelha Polonesa, em 1942.

A revista do Grêmio Literário “Júlia Lopes” divulgou, ainda, de forma permanente e eficaz, a vida social da região. Numa seção denominada “Noticiário” publicou informes rápidos concernentes a sociedade mato-grossense (casamentos, saraus, falecimentos, etc.), lançamento de livros, fundação de estabelecimentos comerciais e industriais, aparecimento de jornais, instalação de clubes e sindicatos diversos, realização de conferências, etc.

Em suas páginas também foram impressas fotos e propagandas diversas, sobressaindo-se fotos de políticos, das sócias do Grêmio “Júlia Lopes” e da cidade de Cuiabá; e propagandas de estabelecimentos comerciais e industriais, de medicamentos e de profissionais liberais.

Quanto a produção literária, A Violeta seguiu os canônes do Movimento Romântico. Ocupou-se em difundir largamente uma produção voltada para o amor, a pátria, a natureza expressiva, a religião, como fé e valor espiritual, a morte, a noite, o luar, as flores, o desejo de evasão, a valorização da história, do passado nacional e da vida simples, em natureza, o anseio de progresso e a preocupação social, aliados a um estado de espírito ora melancólico e pessimista, ora terno e singelo, tal como o fizeram os nossos escritores do Romantismo. Nesta escrita houve a utilização de uma linguagem metafórica, romântica e melodiosa, adequada às efusões do sentimento.

Assim, a revista apresentou-se também eclética quanto ao estilo. De um lado o discurso literário e de outro o discurso direto, coloquial, na produção jornalística, ambos difundidos simultaneamente.

Em linhas gerais este é o esboço que se pode traçar referente a escrita e colaboradores de A Violeta. Ao historiador interessado a uma leitura mais vertical de suas páginas informamos que por certo nela há de encontrar, somado a esse perfil que tentamos esboçar rapidamente a seu respeito, elementos para rastrear a vida literária em Mato Grosso, na 1ª metade deste século; re-escrever a história literária mato-grossense e brasileira e recuperar uma parte da história intelectual da mulher no Brasil.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS;

A Violeta (publicação do Grêmio Literário “Júlia Lopes”). Cuiabá-MT, n. 1 a 333, dezembro de 1916 a março de 1950.

NADAF, Yasmin Jamil. Sob o Signo de Uma Flor - Estudo da revista A Violeta, publicação do Grêmio Literário “Júlia Lopes”- 1916 a 1950. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1993 (527p.).      

                                                  ______________________

 

 

 

O FOLHETIM NOS JORNAIS DE MATO GROSSO

(1850-1950)


                           Por Yasmin Nadaf                                                                                        

Palestra apresentada no XII SEL (Seminário Internacional de Literatura), na UNESP/Assis, na data de 09/09/2014

 

Inicialmente eu gostaria de dizer que este estudo é parte da tese que defendi nesta Universidade em 2001, intitulada “Rodapé das miscelâneas: o folhetim nos jornais de MT”; estudo este posteriormente publicado em livro, em 2002.

Para o desenvolvimento desta pesquisa recebi a competente orientação do professor doutor Luiz Roberto Velloso Cairo, a quem dedico este momento.


A PESQUISA

Uma combinação de fatores levou-nos ao folhetim dos jornais de Mato Grosso como campo de pesquisa. Por nos dedicarmos há alguns anos aos estudos da literatura mato-grossense, sabemos das lacunas existentes em sua história oficial e da necessidade de preenchê-las para a complementação da memória escrita regional.

Ao escolher o citado folhetim, prevíamos a riqueza do material a ser investigado. O seu conteúdo, como todos sabemos, acha-se impresso em jornais, o único veículo de divulgação das idéias da sociedade local no século XIX e começo do século XX.

Deste modo para o desenvolvimento deste estudo recorremos a 125 títulos de jornais mato-grossenses relativos ao período de 1847 a 1969, que se encontram microfilmados pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

São jornais e revistas variadas, atendendo às mais diversas especialidades, entre elas a política, ciência, recreação, literatura, religião e esporte. Alguns restringiram-se mais especificamente a uma dessas áreas, e outros dedicaram-se a todas em conjunto. Pertenceram a governos, associações de caráter diverso, escolas, grêmios culturais e partidos políticos de várias facções. Um grande número experimentou curta existência, e outros atravessaram décadas.

Nesta extensa e variada coleção, localizamos o folhetim em 35 jornais das cidades de Cuiabá, Corumbá (hoje Mato Grosso do Sul), Cáceres e Poconé. Este material encontra-se relacionado na Segunda Parte de nossa tese/livro no “Índice geral dos folhetins ou rodapés nos jornais de Mato Grosso”.

Os estudos até então realizados a respeito do folhetim desconheciam a presença do gênero em Mato Grosso. Este vazio pode ser explicado pela própria ausência de dados históricos acerca da existência da imprensa mato-grossense nos livros que se ocupam da imprensa no Brasil, somada à demasiada atenção consagrada a esse modismo nos jornais da Corte brasileira, responsáveis pela implantação do modelo no País e sua transferência para outros pólos nacionais.

Juntamente com a coleção de jornais mato-grossenses existentes na Biblioteca Nacional, recorremos às coleções do Jornal do Commercio e da Gazeta de Notícias, para cotejamento com o fenômeno folhetinesco na imprensa em destaque. A escolha pelos dois títulos tomou por base três de suas peculiaridades: primeiro, o prestígio que obtiveram no período em que circularam, extensivo a muitas regiões do País, segundo, o largo espaço de tempo de suas existências, abrangendo os séculos XIX e XX, e, terceiro, a divergência ideológica que expressaram. O Jornal do Commercio, conservador, espelhava o “partido da ordem”, e a Gazeta de Notícias refletia as idéias mais democráticas da sociedade. Neste ponto, aproveitamos para anunciar que também em forma de Índice listamos em nossa tese/livro toda a ficção existente no rodapé desses dois jornais cariocas no espaço temporal de mais de 100 anos.

No livro Páginas do passado que estou entregando de presente a todos vocês há um artigo específico sobre o folhetim no Jornal do Commercio, inclusive nele eu repeti a relação da ficção impressa no rodapé desse jornal, tal como está no meu livro Rodapé das miscelâneas. Os leitores vão sempre se renovando e o livro Rodapé já está há muito esgotado.

                                                                   ***

O FOLHETIM EM MATO GROSSO

Em Mato Grosso, o folhetim estreou no início da segunda metade do século XIX, estendendo-se até o final da primeira metade do século XX. Em termos físicos (estruturais), o gênero provou que não fugiu do modelo praticado pelas matrizes da França e do Rio de Janeiro. Plagiou o lay-out do espaço, ou seja, a linha na barra do jornal que unia uma extremidade a outra das laterais esquerda e direita da folha, e onde se gravava a palavra FOLHETIM, ou FOLHETIM D’O JORNAL TAL no início de cada texto; copiou a fórmula folhetim-salada-mista para preencher o rodapé, nele inserindo várias formas discursivas, entre elas o romance, a crônica, o conto/novela, o ensaio, a poesia, e o texto teatral. Igualmente importou as práticas comerciais de divulgação do gênero para atingir vantagens financeiras, tais como a publicação de anúncios da ficção a ser impressa no corpo do próprio jornal, em letras de destaque, ou a venda da ficção em livros ou fascículos, pela redação do jornal.

Foi no recheio, ou melhor, no conteúdo propriamente dito, que recaiu a grande divergência do folhetim dos jornais mato-grossenses, do folhetim dos jornais de outras geografias. A exceção ficou por conta da crônica folhetinesca que seguiu as pegadas dos modelos predecessores. Comecemos por ela:

Nos jornais de Mato Grosso, a crônica folhetinesca tornou-se muito popular, apresentando-se como uma verdadeira cartola mágica de onde se podia extrair de tudo, das mais sérias reflexões, denúncias e reivindicações políticas, econômicas, entre outras, passando-se aos informes sociais, culturais, recreativos e cívicos, até finalmente desembocar nos fatos mais comezinhos e nas divagações fugazes, próprias do gênero.

Seguindo a linha dos seus antecessores, ela usou e abusou dos recursos estéticos estruturais que lhe foram atribuídos pelos cronistas-folhetinistas cariocas. Ora narrou o pequeno ora o frívolo e ora o grandioso, saltou do concreto ao abstrato, do jocoso ao sério, e do real ao onírico, permitiu a associação e/ou o isolamento do fantástico com o circunstancia1, variando, ainda, nos recursos formais, entre eles a finura, a ironia, o humor, o gracejo, a erudição, os paradoxos, as frases incompletas, os epítetos, as epígrafes, a irreverência, e os textos em forma de diálogo, outros em forma de carta, entre outros jogos estruturais.

Do mesmo modo proporcionou ao seu criador a oportunidade para alçar voos literários em sua pena, resultando no aparecimento da crônica companheira não só da história (referimo-nos ao registro do circunstancial), mas também amiga da literatura. E, nesta segunda instância, contribuiu para a formação de escritores que deram entrada no mundo das letras pelo exercício de sua escrita, para depois seguirem em direção à ficção.

Ainda fiel à outra regra básica imposta por esse tipo de escrita – de salientar os aspectos do próprio habitat do narrador umbilicados ao tempo presente – os cronistas folhetinistas listados em nossa pesquisa pertenceram em sua grande maioria à própria região de Mato Grosso, excetuando-se um dos mais lidos cronistas cariocas do século XIX, França Júnior, cujas crônicas de costumes foram impressas nos jornais A Opinião, no ano de 1878, e O Matto-Grosso, no ano de 1894.

Já a ficção presente no rodapé em discussão, fugiu do modelo tradicional consagrado ao folhetim, enquanto rodapé. Inicialmente podemos assinalar a quase total ausência do clássico romance-folhetim nos periódicos analisados, não fosse a tímida presença de dois dos seus consagrados romancistas, Georges Ohnet e Henrique Perez Escrich, sendo este segundo não um francês, mas um espanhol que embarcou na esteira do sucesso do gênero.

Do primeiro, publicou-se Vontade no jornal O Debate, nos anos 1911-12 e do segundo imprimiu-se o romance O anjo da guarda e as novelas O violino do diabo, O amigo íntimo e A verdade nua e crua, em A Provincia de Matto-Grosso, no período de 1879 a 1882.

Mesmo assim, cabe a ressalva de que estes escritos encontram-se entre aqueles da última fase do romance-folhetim demarcada por Marlyse Meyer, em seu livro Folhetim: uma história.(1) Um período que compreende os anos de 1871 a 1914, e onde o gênero voltou-se para uma estrutura romanesca mais suave, com enredos centrados nos lares e nos valores morais possíveis à sua salvação: o amor, de preferência o lírico e o sublime, a unidade familiar, a honra, a modéstia, a resignação, o vigor às adversidades, a bondade, a supremacia da verdade sobre a mentira, entre outros.

Com pontos convergentes que citamos quanto ao lay-out e fórmulas comerciais entre o folhetim da imprensa mato-grossense e o folhetim da imprensa carioca, seu modelo e, diga-se de passagem, vitrine para o folhetim que se espalhou para as demais regiões do país, questionamos a respeito do fator ou dos fatores que levaram à quase exclusão do romance-folhetim, que deu fama e identidade ao rodapé francês e carioca, do rodapé dos jornais de Mato Grosso.

Lembramos que a nossa pesquisa é pioneira quanto ao tema e que na impossibilidade de localizarmos fontes escritas ou testemunhos que esclareçam o fato, levantamos três hipóteses correspondentes a esta ausência na busca de uma resposta explicativa para esta questão.

A primeira delas voltou-se para a questão contratual de direitos autorais de transcrição e publicação destas obras, verdadeiras “galinhas dos ovos de ouro” para muitos escritores e proprietários de jornais. Pensamos num certo alto custo ou exclusividade de texto para este ou aquele veículo de imprensa, mas isto mostrou-se inválido logo que voltamos os olhos para o rodapé da imprensa do Rio de Janeiro e constatamos que diversos jornais publicaram coincidentemente quase os mesmos títulos dos clássicos folhetinescos, alguns deles variando apenas o ano de divulgação. Por outro lado, estes mesmos títulos foram impressos em jornais de várias regiões do país, permitindo-nos julgar que se variados jornais, tanto os pertencentes à grande, à média ou à pequena imprensa, e de localidades também diversas apresentaram tais obras é porque essa publicação não seria de todo impossível, quer se atenha a questões financeiras ou outros desdobramentos contratuais. Isto sem contarmos ainda o mérito da transcrição pirata de textos e obras que a esse tempo existia facilitada pelas longas distâncias geográficas que separavam países e regiões dificultando uma fiscalização editorial mais eficiente.

Já a segunda hipótese centrou-se na existência de um possível conservadorismo por parte dos proprietários ou diretores dos jornais no que diz respeito ao caráter popular conferido a essa literatura, que era vista como avessa ao modelo culto (Balzac, por exemplo). Contudo, esta tese também malogrou, pois ao concluirmos a leitura da produção impressa nesse folhetim, constatamos a existência de escritas diversas sem rigor de distinção estética – “boa x má” literatura. Acentuamos a presença dos autores anônimos, dos iniciantes e, ainda, dos dilettantis que escreveram pelo simples prazer de redigir um ou outro texto.

Quanto à terceira hipótese, esta restringiu-se a uma provável resistência que supomos ter havido por parte dos responsáveis pelos referidos periódicos, em relação ao teor ideológico voltado excessivamente para o social e o político presente na escrita dos clássicos do gênero como Sue, Dumas pai, Ponson du Terrail e similares. Esta tese confirmou-se de forma bastante positiva, na escrita em estudo, pela notável preferência pela exposição da temática lírica e de defesa de preceitos conservadores em detrimento da realidade social ou política combatente presente no romance-folhetim.

Neste ponto, é oportuno assinalar que o folhetim dos jornais mato-grossenses deu abertura a uma ficção eclética, nela cabendo indistintamente a produção de autores brasileiros oitocentistas muito lidos e amados à época como José de Alencar, Visconde de Taunay, Aluísio Azevedo, e Joaquim Manuel de Macedo; autores estrangeiros, uns consagrados, como Alphonse de Lamartine, Anatole France, Edgar Allan Poe, Conan Doyle, e Arsène Houssaye, outros populares, como Henrique Perez Escrich, Georges Ohnet e Manuel Pinheiro Chagas, e, outros, ainda, anônimos, cuja obscuridade não nos permitiu identificá-los nem nos dicionários literários, e de autores estreantes, procedentes da própria região de Mato Grosso. Todos, porém, com uma visão de mundo voltada para o mesmo horizonte, como nos revela suas escritas.

Uma análise sucinta dessa produção comprova a difusão homogênea de um mundo conservador, exposta através de determinados novelos temáticos divulgadores de um seleto grupo de valores sentimentais, morais, sociais, religiosos, patrióticos, históricos e políticos, e filosóficos. Tais novelos reiteram uma rede de sintagmas voltados para a Pátria/Região (passado e presente, alma e terra), a Moral (dever, justiça, honestidade, pureza, bondade e simplicidade), e a Religião (fé, caridade e amor incondicional), proporcionando o encontro permanente de um utilitarismo tradicional, formulador de verdades conclusivas como “O bem vence o mal”, “A virtude e o amor triunfam”, “A luxúria e a ostentação são castigadas”, “O trabalho fortifica e enobrece” e “Os pobres, humildes e corretos terão o reino dos céus”.

Na mesma linha de visão conservadora, encerram-se, no rodapé em estudo, ainda que em menor número, textos apresentados sob a forma de ensaios, conferências, discursos, entre outros, de autores conhecidos e desconhecidos, centrados na discussão e na valorização da religião cristã e da História/Pátria.

  ***

Estes traços diferenciadores atestam a total independência do folhetim de Mato Grosso do perfil consagrado do gênero nos grandes centros mundiais de cultura da época – Paris e Rio de Janeiro. O mesmo não se curvou ao sensacionalismo e à audiência conquistada através da ficção folhetinesca, respondendo com coerência e fidelidade à demanda da natureza de sua realidade circundante: os proprietários ou editores dos jornais, autores e leitores eram burgueses e viviam como tal, o catolicismo reinava como religião oficial e dominante, a sociedade culta impregnava-se das diretrizes do Movimento Romântico, mesmo depois que este deixou de ser moda, e a literatura oficial, nascida com autores militares, já trazia um estilo precursor do positivismo anterior ao seu aparecimento, e fortalecia-se com a propagação dessa corrente filosófica.

Irmanado a essa conjuntura, o folhetim mato-grossense optou por uma escrita branda, recheada de amor romântico ou altruísta, fé, bondade, pureza, honestidade, ordem, dever, patriotismo, probidade, entre outras dóceis e utilitárias virtudes enumeradas, contrárias aos dramas frenéticos, tramas hábeis, farsas, mistérios, crimes, roubos e misérias exageradas, peculiares ao gênero folhetinesco francês. Priorizou a estética do sentimento, da moral, da religião e da História/Pátria, nas mais variadas formas de escrita assinaladas. Seus valores difusos, como vimos, acham-se calcados nos dogmas do Evangelho e do pensamento manifesto pelos filósofos Jean-Jacques Rousseau e Auguste Comte. Repetem e fortalecem os princípios oficiais da “antiga ordem européia”, ao mesmo tempo em que reverberam o contexto da sociedade letrada local e espelham a imagem idealizada pelo poder público regional – Província, depois Estado, Igreja, e entidades culturais hegemônicas, Instituto Histórico de Mato Grosso e Centro Mato-grossense de Letras, que viviam em perfeita harmonia com as duas primeiras forças, desde as suas instalações nos anos de 1919 e 1921, respectivamente.

No período em evidência, era sólida a coesão entre a elite culta, política e religiosa em Mato Grosso, notadamente na capital Cuiabá, de onde procede grande parte do instrumental histórico recuperado neste estudo. Esta coesão facilitou o intercâmbio de idéias que resultou na visão de mundo homogênea presente na escrita impressa no espaço em análise, tanto no que se refere aos textos compilados de outros autores, como daqueles oriundos dos produtores regionais. Os dirigentes dos jornais e autores locais pertenciam aos órgãos governamentais, políticos e religiosos, onde ocupavam funções variadas de destaque, e às citadas sociedades histórico-culturais.

Alicerçado no discurso vinculado a uma campanha para a reestruturação da sociedade em nível cultural e de progresso material, e para a manutenção da ordem e da moral, donde a conformidade rígida com o passado, o orgulho nacional e regional, e a retidão moral e religiosa exacerbadas, o folhetim aqui abordado, contribuiu deliberadamente para o fortalecimento de uma “cruzada civilizatória” em prol da "isolada" e "esquecida" região. De saída, incentivou o refinamento cultural, publicando narrativas de autores estrangeiros e nacionais, conhecidos ou consagrados, dando ao leitor (ouvinte) da longínqua Província, depois Estado, a oportunidade de reciclar-se esteticamente.

O mesmo incentivo ocorreu com a abertura do espaço à escrita local, quando a crônica folhetinesca surgiu e se consolidou de forma primorosa, seguida tardiamente pela ficção de autores regionais, que rompeu a partir da segunda década do novecentos.

Correspondendo, também, ao ideal civilizatório, essa escrita entreteve, informou, educou, criou hábitos de leitura, formou autores, refinou costumes, ditou regras sociais, morais e religiosas, e fortaleceu a identidade regional. Na busca deste último aspecto, valorizou o passado e o presente, a alma e a terra, e expressou uma imagem saudosista e de esperança para o momento atual e o futuro da região: enalteceu os feitos heróicos, a natureza e suas riquezas naturais, os costumes, os dialetos, o vigor físico do mato-grossense e sua capacidade de suportar com dignidade os prejuízos decorrentes do isolamento geográfico territorial, do esquecimento logístico por parte dos governos Imperial e Republicano, e das sangrentas lutas e revoluções políticas internas.

É indiscutível que paralelamente à imagem regional positiva divulgada, os escritos assinados pelos autores mato-grossenses, salvo algumas exceções, apontaram as deficiências materiais da região, reivindicando melhorias. Entretanto, essas carências também ganharam um tom otimista com o depósito da esperança no sentido de sua superação. Grande parte dos textos que se ocuparam do tema apostaram na reversão do contexto deficitário, e clamaram a atenção das autoridades, propondo soluções para a resolução dos citados problemas.

Proclamando esse imaginário de crença no desenvolvimento estrutural da Província-Estado, o folhetim dos jornais mato-grossenses apresentou, no longo período de cem anos de existência, uma interação entre a transformação progressiva (modernidade material) e a permanência histórica (resistência de velhas forças e idéias). A modernidade era aceita na medida em que pudesse proporcionar conforto e bem-estar à sociedade, mas era vetada caso lhe alterasse os hábitos e o pensamento conservador.

Esta linha temática dúbia esteve presente no folhetim dos periódicos de Mato Grosso. É certo que um ou outro deu maior ênfase a uma das vertentes, mas nenhum deles escapou da vinheta de ideologicamente “conservador”. “Liberal”, “Republicano”, “Independente” ou “Democrático” todos seguiram essa linha, contradizendo o propósito estampado em seus epítetos que ensejam uma luta pela liberdade e igualdade do homem contra as forças de submissão.

Esta postura firme atesta que o rodapé em questão conquistou uma tradição semântica independente do corpo do jornal, abrindo mão do rigor ideológico do veículo que representava para agradar ao público leitor (ouvinte) e manter seu nível de audiência.

Acreditamos que este mesmo motivo levou-o a distanciar-se das citadas renovações e transformações filosóficas, culturais, sociais, políticas e científicas operantes na região, no País e no mundo. Entre elas reafirmamos, pela sua projeção, o cientificismo e o materialismo filosófico, o realismo/naturalismo e modernismo literário, a mudança do regime Imperial para o Republicano, a guerra do Paraguai, os levantes comunistas internos, as Grandes Guerras mundiais, e as mudanças materiais restritas a Mato Grosso como a chegada dos automóveis, aeroplanos, rádio, cinema, no século XX, mudando hábitos e encurtando as distâncias entre o Estado e os demais pólos do País.

No espaço-tempo de sua trajetória igualou-se somente com o ideário da Era Vargas, que propagou princípios idênticos aos divulgados desde o seu aparecimento no começo da segunda metade do século XIX.

Manteve, portanto, a força da tradição do ideário conservador correspondente à conjuntura burguesa circundante, a que serviu. E em que pese esta tendência ideológica unilateral, cumpriu em seu bojo o múltiplo papel que buscamos divulgar ao longo deste texto. Papéis cujo saldo positivo garantem um lugar de destaque para a cultura escrita mato-grossense, atestando que, em seu passado, não deixou nada a dever em relação aos grandes centros culturais do País e do mundo.

Quadro 1. Romances, novelas ou contos chamados de novelas de autores estrangeiros e de outros estados brasileiros, impressos no Folhetim dos jornais de Mato Grosso.

TÍTULO

AUTOR

JORNAL

ANO

DE PUB.

GÊNERO

“Uma cabeça de anjo”

Sem indicação (Extr.)

A Imprensa de Cuyabá

1861

Conto/novela

“A bastarda”

Sem indicação (Extr.)

A Imprensa de Cuyabá

1861

Conto/novela

“A carteira de meu Tio”

Joaquim Manuel de Macedo (Brasil-RJ, 1820-1882)

A Imprensa de Cuyabá

1862

Sátira romanceada

“Mabel Sparkling”

Sem identificação

A Situação

1875

Conto/novela

“O violino do diabo”

Henrique Perez Escrich (Espanha, 1829-1897)

A Provincia de Matto-

Grosso

1879

Novela

“O anjo da guarda”

Henrique Perez Escrich (Espanha, 1829-1897)

A Provincia de Matto-

Grosso

1879

Romance

“O amigo íntimo”

Henrique Perez Escrich (Espanha, 1829-1897)

A Provincia de Matto-

Grosso

1881-82

Novela

“A verdade nua e crua”

Henrique Perez Escrich (Espanha, 1829-1897)

A Provincia de Matto-

Grosso

1882

Novela

“Minha prima Laura”

Sem indicação (Extr.)

O Expectador

1884

Conto/novela

“Um amor infeliz”

P. Serra

O Matto-Grosso

1890

Novela

“A vida de uma atriz”

Théodore de Banville (França, 1823-1891)

O Matto-Grosso

1893

Conto/novela

“Inocência”

Visconde de Taunay     (Brasil-SC, 1876-SP, 1958)

O Republicano

1897-98

Romance

“Regina”

Alphonse de Lamartine (França, 1790-1869)

O Republicano

1898

Novela

“Philomena Borges”

Aluísio Azevedo      (Brasil-MA, 1857- Argentina, 1913)

O Republicano

1898-99

Romance

“Tartarin de Tarascon”

Alphonse Daudet         (França, 1840-1897)

O Republicano

1899

Sátira romanceada

“Memórias de um Sandeu”

Eugenio Noel             (Espanha, 1885-1936)

O Matto-Grosso

1904

Biografia romanceada

“O poeta da rainha”

Clemence Robert         (França, 1797-1872)

O Matto-Grosso

1904-05

Biografia romanceada

“O Guarani”

José de Alencar             (Brasil-CE, 1829-RJ, 1877)

O Commercio

e

Tribuna

1911

1918

Romance

“Vítima do sigilo da confissão – Segundo um fato verídico”

L. Heitzer

A Cruz

1911

Novela

“Idílios à beira d’água”

Alberto Pimentel         (Portugal, 1849-1925)

A Imprensa

1911

Romance

“Vontade”

Georges Ohnet               (França, 1848-1918)

O Debate

1911-12

Romance

“Flores sangrentas”

René Gaell

A Cruz

1912

Novela

“O abade Constantino”

Ludovic Halévy           (França, 1834-1908)

O Debate

1913

Romance

“O Correio do Czar”

René Gaell

A Cruz

1913-14

Romance

“O Maçon da Virgem”

Fl. Bouhours

A Cruz

1914-15

Novela

“A virgem Guaraciaba”

Pinheiro Chagas   (Portugal, 1842-1895)

Tribuna

1921

Romance

Quadro 2. Romances, novelas ou contos chamados de novelas de autores mato-grossense, impressos no Folhetim dos jornais de Mato Grosso.

TÍTULO

AUTOR

JORNAL

ANO 

DE PUB.

GÊNERO

“O anjo da bonança”

A. Correia

A Opinião

1878-79

Novela (Leitura

Incompleta)

“A vida de um garoto”

F.A. Ribeiro [Francisco Agostinho Ribeiro]

O Corumbaense

1881

Novela (Leit. Inc.)

“O amor tudo perdôa”

A. Pinheiro Brandão

Diário da Tarde

1915

Novela (Leit. Inc.)

“Odália”

Clóvis

Correio do Estado

1924

Romance (Leit. Inc.)

“Cinzas do passado”

Feliciano Galdino

A Cruz

1929

Novela

“Visita à Catedral”

José de Mesquita

A Cruz

1932

Capítulo de novela

“Sublimação”

José de Mesquita

A Cruz

1933

Capítulo de novela

“O assalto”

José de Mesquita

A Cruz

1933

Capítulo de novela

“Os paredistas”

José de Mesquita

A Cruz

1933

Capítulo de novela

“O poder da prece”

José de Mesquita

A Cruz

1933

Capítulo de novela

“O pântano”

José de Mesquita

A Cruz

1933

Capítulo de novela

“No país das sombras”

José de Mesquita

A Cruz

1933

Capítulo de novela

“Noites de encantos”

José de Mesquita

A Cruz

1934

Capítulo de novela

“Vida rústica”

José de Mesquita

A Cruz

1934

Capítulo de novela

“Dar e receber”

José de Mesquita

A Cruz

1938

Capítulo de novela

“O modelador de almas”

José de Mesquita

A Cruz

1939

Capítulo de novela

“Estandardização”

José de Mesquita

A Cruz

1939

Capítulo de novela

“Variações sobre a vida”

José de Mesquita

A Cruz

1941

Capítulo de novela

“Amparo”

José de Mesquita

A Cruz

1941

Capítulo de novela

“Confiança”

José de Mesquita

A Cruz

1942

Capítulo de novela

“Claridade”

José de Mesquita

A Cruz

1942

Capítulo de novela

“Conversa ao pé do rádio”

José de Mesquita

A Cruz

1942

Capítulo de novela

“O suave colóquio”

José de Mesquita

A Cruz

1942

Capítulo de novela

“Encruzilhada”

José de Mesquita

A Cruz

1943

Capítulo de novela

“A tese do sofrimento”

José de Mesquita

A Cruz

1944

Capítulo de novela

“Era um poaieiro”

Alfredo Marien

A Capital

1949

Novela

“Fé imperativa”

José de Mesquita

A Cruz

1950

Capítulo de novela

NOTAS

(1) Marlyse Meyer Marlyse Meyer classifica três fases na trajetória do romance-folhetim: a primeira vai de 1836 a 1850, a segunda, de 1851 a 1871, e a terceira, de 1871 a 1914. Esta distinção coincidiria com o período marcado pela luta de classes e a organização operária, entre 1830 e 1871, assinalado pelo historiador do movimento operário Edouard Dolléans. Assim, do ponto de vista histórico, poder-se-ia dizer que o romance-folhetim nasceu pós-revolução burguesa de 1830 e desembocou na revolução de 1848. Neste período a sua vigência coincide ainda com a tendência à democratização manifestada pela imprensa da Monarquia de Julho, no governo de Luís Filipe, e com o estouro do Romantismo. Em seguida, ressurge no Império de Napoleão III (Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão I), findando-se com a guerra franco-prussiana. Por fim, reaparece com a Comuna de Paris, em 1871, e se estende até a carnificina de 1914. In: MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história ... p. 64.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Catálogo de periódicos brasileiros microfilmados. Fundação Biblioteca Nacional, Departamento de Processos Técnicos, Divisão de Microrreprodução. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Departamento Nacional do Livro, 1994.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas. O folhetim nos jornais de Mato Grosso (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2002.

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A PALAVRA DA COLECIONADORA

 

 

Por Yasmin Jamil Nadaf

 

Leitora de berço, dei os primeiros passos ouvindo as lendas do mundo árabe narradas pelos adultos de minha família procedentes daquela região. Meu imaginário inicial povoou-se, assim, de suntuosos palácios, de belos kalifas, formosas princesas e sedutoras odaliscas, de tapetes voadores, de mercados de jóias a céu aberto, e de gênios saindo e entrando de mágicas garrafas, prontos a atender aos mais insólitos desejos dos mortais. Os árabes – para o meu desfrute – são excelentes contadores de estórias e histórias.

Fui crescendo e somando esse fantástico universo à cultura ocidental, época em que os gibis (hoje HQs), as revistas e os jornais disputavam as minhas horas de leitura com os clássicos da literatura brasileira e universal. A mescla do acesso à escrita popular, de massa e erudita resultou naquilo que hoje eu sou: uma leitora, escritora, professora e cidadã despojada de pré(conceitos), e amante de culturas múltiplas e não isoladas.

Consciente dos valores do ato de ler, armazenei, ainda menina, impressos ganhos ou adquiridos, fato que explica o surgimento e a existência das minhas coleções de gibis, almanaques diversos, periódicos e livros, muitos livros, de preferência os de literatura prenúncio da profissional que eu viria a ser.

Incorporada no universo das letras fui “engordando” a minha estante que há mais de uma década tornou-se referência constante para professores e pesquisadores das chamadas áreas de ciências humanas vinculadas a instituições acadêmicas.

O desejo de uma travessia de vida mais democrática impulsionou-me na busca pela realização de uma exposição que se não apresentasse as diversas faces do meu muito amado acervo, que pudesse divulgar uma sua pequena fração. Deu-se a escolha pelo objeto a ser exposto: os almanaques de farmácia, um conjunto de revistinhas tão ao meu gosto pela sua especificidade. Pequeninas e graciosas são verdadeiras oficinas para e/da vida passada, e referência obrigatória para o presente e para o futuro. Lidas e relidas por milhões de brasileiros carregam (e como carregam) “identidade” e “memória”, traços que não caem no esquecimento, e que no caso em questão acumulam saber e se enriquecem com o passar dos anos.

Feita a parceria com o Departamento Nacional do SESC esta coleção – agora extramuros – irá materializar o sumo daquilo de que é feito a sua dona: derrubará cercas que impedem a junção ou o diálogo entre o mundo geométrico-acadêmico e o espaço aberto da vida cotidiana, para o deleite dos leitores e observadores de perfis variados, e a quem esses almanaques pertencem como reza a sua ideologia impressa e expressa ao longo de sua trajetória.

Indispensável (e necessário) é o registro dos meus agradecimentos à direção do Departamento Nacional do SESC e sua competente equipe técnica por darem vez e forma a esta exposição que traz o sugestivo título de Tempo de Almanaque. Sim, Tempo de Almanaque porque sempre “é tempo” e sempre “haverá tempo” para apreender e aprender.


[Este Texto consta do Catálogo de Exposição Tempo de Almanaque. (Rio de Janeiro: SESC – Departamento Nacional, 2011), por ocasião da exposição de almanaques de farmácia, a mim pertencentes, e que percorreu o Sudeste, o Norte e parte do Centro Oeste. A exposição foi aberta na Festa Literária de Paraty (FLIP), em julho de 2011].


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Texto traduzido de: BORY, Jean-Louis. Premiers éléments pour une esthétique du roman-feuilleton. In: _______. Tout feu, tout flamme. Paris: Julliard, 1966.

 

Trad. de Yasmin Nadaf

 

 

(Publicamos essa tradução com o objetivo exclusivo de oferecer subsídios aqueles que se dedicam a pesquisa do romance-folhetim)

 

PRIMEIROS ELEMENTOS PARA UMA ESTÉTICA DO ROMANCE- FOLHETIM


 

 

Atenção, não se aproxime. Freqüentemente inofensivo, ele pode, nunca se sabe, de repente, se tornar, mau. Ele dorme, eis o momento – mas como descrever esta coisa devoradora? A pata é de leão, a cauda de peixe, a asa de águia, a boca de lobo. Porém o senhor o reconheceu: é o Monstro.

O romance-folhetim é antes de tudo determinado pelas condições de sua existência: ele se destina ao mais vasto público possível, por meio, da imprensa, que o publica por blocos. Eis a primeira regra do gênero: ele deve não somente admitir estes cortes, mas se alimentar deles, retirar os efeitos, uma estética – através dos elementos principais: o episódio e a série, exatamente como para esses filmes de episódios, os seriados tão experimentados pelos surrealistas, e dos quais é significativo encontrar o modelo do gênero em Mistérios de New York. É preciso que o episódio publicado seja não somente um todo – que satisfaça uma certa expectativa do leitor – mas que renove esta espera, crie o que nós chamamos hoje de “o suspense”.

 

É sobretudo no corte, senhor, que o verdadeiro folhetinista se reconhece. É preciso que cada número caia bem, que se ligue ao seguinte por uma espécie de cordão umbilical, que ele chame a atenção, que dê o desejo, a impaciência de ler a continuação. O senhor falava de arte, há pouco; eis a arte. É a arte de se fazer desejar, de se fazer esperar. O senhor tem, suponho, um senhor Arthur por quem o seu público se interessa. Manobre este tipo, de forma que nenhum de seus feitos e gestos se desvirtue, não alcançando o efeito esperado. A cada final de folhetim uma situação crítica, uma palavra misteriosa, e Arthur, sempre Arthur no final! Quanto mais o público apreciar o seu Arthur, mais o senhor deve tirar partido, usando-o como isca. E, se em alguma situação o senhor puder usar este Arthur a cavalo para o aumento do número de assinantes, ameaçando os retardatários de perderem a chance de saber o que se tornou seu herói favorito, o senhor terá realizado o maior sucesso de arte que um homem de estilo, como o senhor, possa ambicionar. (1)

 

Não é fato muito freqüente como este gênio da continuação no próximo número que Xerazade, retardando a morte durante mil e uma noites, deve ter tido a vida salva. George Sand confessa a Véron que ela não sabe muito como cortar suas séries; ela não possui a arte de terminar um capítulo com uma peripécia interessante mantendo o leitor na expectativa, aguardando com curiosidade e inquietude. Balzac também não, incapacitado de aumento devido a suas longas introduções descritivas. Sue, sim, se nós julgamos por seus inúmeros correspondentes.

 

... Depressa, senhor, o epílogo de Gerolstein, e eu me rejuveneço, e eu revivo!

... Como o senhor nos deixa lângüidos! Quando, então, voltarão Mistérios de Paris? É o momento de viver sem eles?

... Nós estamos tão apreensivos com nossos personagens. Nós os deixamos em posições tão medonhas que estamos ansiosos para ter notícias deles. Que prazer teremos em revê-los, prazer que será, porém, ainda perturbado por duas palavras que fazem nosso desespero: “continua amanhã”, estas palavras que chegam sempre no momento mais crítico para nos deixar vinte e quatro horas de espera e freqüentemente de angústia. (2)

 

Todos os meios que suscitam esta espera ou esta angústia são bons: cortar nitidamente a ação neste ponto crítico ao qual o episódio terá conduzido; e o melhor corte é ainda o que, juntando a obscuridade ao patético, suspende a ação em um segundo de uma aparição misteriosa:


 

Mas a porta se entreabriu e a gente viu aparecer um braço. Na ponta deste braço uma mão. E nesta mão um punhal. Que punhal era este? Que mão era esta? (A continuação no próximo capítulo). (3)

 

Ou no segundo que precede a aparição:

 

Hum! Estas crianças - diz Dagobert acariciando seu bigode com orgulho - como se vê que elas têm sangue de soldado em suas veias! E ele acrescenta: ei-nos, portanto, prisioneiros. O último cavalo do general foi morto montado por ele; para pegar a estrada ele monta Jovial que não havia sido ferido naquele dia; nós chegamos à Varsóvia; foi lá que o general conheceu sua mãe, senhor; ela era apelidada de “A Pérola de Varsóvia”, o que diz tudo. Ele, que amava o que era bom e belo se apaixonou logo; ela, por sua vez, o ama; mas seus pais a haviam prometido a um outro ... e este outro ... era ainda ...

Dagobert não pode continuar.

Rose deu um grito agudo apontando, apavorada, a janela. (Continua amanhã). (4)

 

Ruptura brusca, freqüentemente seguida de uma queda brutal de tensão, desde que o episódio seguinte, para fazer durar a angústia, tem o cuidado de transportar o leitor e fazer recomeçar o jogo: pegando o leitor no grau zero de emoção, levando-o ao cume do patético, e o deixando lá.

 

 

O leitor nos perdoará por abandonar uma de nossas heroínas em uma situação tão crítica da qual nós diremos, mais tarde, o desfecho.

As exigências deste relato múltiplo, infelizmente variado demais em sua unidade, nos forçam a passar, incessantemente, de um personagem a outro, a fim de fazer desenvolver e progredir o interesse geral da obra e que está em nós. (5)

 

A astúcia consiste às vezes em cortar o folhetim sobre a isca de um novo ambiente, a começar em algum tipo de folhetim seguinte, a curiosidade substituindo, então, a angústia:

 

Nós deixaremos a senhora Séraphin e sua vítima no caminho que conduz ao rio. Nós as precederemos, de alguns momentos, na Ilha do Devastador. (6)

 

A curiosidade se enriquece de angústia se a mudança do cenário é acompanhada de obscuridade:

 

A esta tocante leitura sucedeu um longo silêncio.

As lágrimas de Rose e de Blanche rolavam lentamente.

Dagobert, a fronte apoiada sobre a mão, estava, também, dolorosamente absorto.

Lá fora, o vento aumentava de violência; uma forte chuva começava a chicotear os vidros sonoros; o mais profundo silêncio reinava na pousada.

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Enquanto as filhas do general Simon liam, profundamente emocionadas, alguns fragmentos do jornal de seu pai, uma cena misteriosa, estranha, se passava no interior do mini zoo do domador de animais. (Amanhã o nono capítulo). (7)

 

Primeira conseqüência sobre a forma do romance: a linha quebrada de sua ação, série de pontas coincidindo com os cortes do folhetim, pontas de aclive mais ou menos rápido. Linha descontinuada mesmo, desde que o declive do episódio, retorno à uma calma pouco desejada, é escamoteado entre duas publicações: série de saltos e sobressaltos. Segunda conseqüência: estes saltos no espaço e no tempo, estas mudanças exaustivas de cenário, esta descontinuidade ostentada acionam a regra das três multiplicidades (8) – de tempo, de lugar, de ação, isto é, uma complicação da intriga, um aumento no volume de cenários e personagens, bem cômodos para o autor: eles permitem alimentar, conduzir a peripécia, de recuar, de precipitar o desenrolar livre de sua imaginação (9); ou, mais exatamente, quando o folhetim é escrito à medida em que é publicado, de acordo com, a aceitação do público. O sucesso alonga: Os mistérios de Paris passaram de dois a dez volumes; as reações dos leitores determinam tal ou tal mudança de cor, influindo sobre o destino de Chourineur ou sobre a morte de Fleur-de-Marie. Esta liberdade de invenção que o autor deve à regra das três multiplicidades, ele risca de alienar a favor do público – o que sociologicamente pode apresentar um grande interesse, mas com o risco de tornar-se, esteticamente, uma catástrofe.

Vemos os perigos. Sem dúvida, o movimento, a surpresa, a velocidade (tudo é sempre questão de segundos, um segundo a mais e é tarde demais: Rodolphe morre. Mayeux se mata), os três elementos necessários permitem dissimular inverossimilhanças ou contradições. Sem dúvida, a descontinuidade ostensiva se submete a uma continuidade mais íntima, a do ritmo romanesco, aqui desassociada da continuidade do relato – e é isto que conta, expressões como “conter o fôlego” ou “perder o fôlego” indicam o quanto o folhetim é antes de tudo uma questão de respiração. Ele não impede: a descontinuidade e multiplicidade provocam a dispersão. Uma dispersão admirável desde que responde, ela mesma, a uma visão voluntariamente incoerente, fragmentária, do mundo como Sue, no prefácio de Atar Gull, o havia, ele mesmo, preconizado para o romance marítimo considerado como o romance de aventura fragmentada, da dispersão heróica – mas que pode apenas desconcertar o grande público.

 

Eu me interesso por Dagobert e suas irmãs gêmeas, pelo marechal Simon, que eu não tenho a honra de conhecer, por Djalma, pela família Baudoin, por Rabat-joie, pela senhorita de Cardoville, pela senhorita de Mayeux, por Gabriel, eu divulgo meu interesse por todas as partes do mundo, tanto e tão bem que freqüentemente eu não sei mais onde reencontrá-lo. (10)

 

Daí todo um arsenal de receitas técnicas dissimulando esta dispersão e esta complexidade crescentes. 1) Lembranças: “A gente se lembra que em sua visita à casa da rua do Templo, Rodolphe havia encontrado sobre o patamar ...” , lembranças às vezes desprezadas, “nós acreditamos inútil relembrar ao leitor que ...”, ou que tomam a forma de identificação insistente, “Germain, o filho infortunado do proprietário da escola”, “Senhora d’Orbigny, sogra da senhora d’Harville”; 2) Anúncios: “Nós contaremos mais tarde os resultados desta descoberta”, que se tornam antecipações: “Nós reencontraremos o senhor de Saint-Remy em circunstâncias que contrastarão terrivelmente com a brilhante posição que ele ocupava...”; 3) Coincidências sublinhadas: “A criança de quem Rodolphe se lamentava amargamente morrera aproximadamente com a mesma idade em que Fleur-de-Marie fora abandonada na Chouette pela encarregada do notário Jacques Ferrand.” 4) Esclarecimento adiado, “nós diremos porque” – ou imediato, “este personagem misterioso era Jacques Ferrand o notário que, querendo se desfazer de Fleur-de Marie ...”. Tantas indiscretas intervenções do autor nos permitem estimar que ele abusa de sua onipotência, mas trabalha assim para atenuar o caráter destemido de sua criação. É em nome da coerência e da unidade geral da obra que ele recorre a estes expedientes que estaríamos tentados de rotular como centrípetos. Da mesma forma que ele prefere a utilização convergente do acaso – utilização esta propriamente “romanesca”, a outra, a divergente, a incoerente, sendo anti-romanesca. É por acaso que o encontro Tom – a Chouette – Chorineur se passa no local onde Rodolphe leva a Goualeuse para passear; por coincidência que todo o mundo se reencontra na rua do Templo 17 ou na sala da senhorita Ferrand. Graças a estas astúcias técnicas e a esta convergência de coincidências, a ação que correria o risco de se dispersar sob o efeito da regra das três multiplicidades, se fecha, continuamente, sobre ela mesma.

Isto não é suficiente para evitar toda a dispersão. Nada deve distrair do movimento essencial e de sua “respiração”. O estilo pelo estilo seria um erro – uma “brincadeira”. Toda poesia deve realçar do ato e não do arranjo das palavras. O estilo não existe, é apenas um instrumento, e, como tal, sua excelência se mede pela sua eficácia. O único estilo possível é, portanto, o estilo útil. Ele não disfarça, pelo contrário, as habilidades técnicas indispensáveis: a gente se lembra que... é necessário lembrar que... nós transportaremos o leitor... esperando que... . Ele utiliza a fundo todos os recursos de pontuação sublinhando o mistério (?), a suspensão do fôlego (...), a surpresa e o horror (!) e alcança o ápice da pontuação patética com o !!!... Bem-vindo a todo lugar comum, e por isso mesmo ele fez sua prova, às fórmulas aumentadas por experiências passadas e bem sucedidas, ao ritual emotivo: Sua fronte se inundou de um suor gelado, seus joelhos trêmulos perderam a força e ele caiu sem movimento ao lado deste túmulo aberto. Todos os adjetivos “pesados” – hediondo, atroz, imundo, vil, puro, suave, sublime, miserável, terrível. E viva o indizível, que é preciso, sobretudo, evitar dizer – não se trata aqui de literatura: Clémence grita em um tom impossível de se explicar, é impossível exprimir o olhar, o gesto, a expressão da fisionomia de Rodolphe. Compreende-se que os amantes de uma boa linguagem se desviem de tal escrita.

 

O senhor Eugène Sue, que poderia disputar com o senhor Balzac o título do mais fecundo dos romancistas se ele moderasse um pouco sua escrita sempre intensa, poderia obter na literatura um lugar mais alto do que o que ocupa. Seu sucesso junto ao público não seria maior porque ele não o pretende, mas ele ganharia assim o voto de todos que não lêem apenas por curiosidade e que lamentam que as qualidades de imaginação e observação que nunca faltaram ao senhor Sue não estejam encaixadas em um estilo mais puro, mais nítido, mais literário, enfim. A aprovação dos artistas não é menos necessária a um escritor que a do público. (11)

 

Perigosa distração é também a descrição e a análise psicológica que impulsionam. O cenário ignora a neutralidade – a pura objetividade. Ele representa seu papel, branco ou preto: branco – o quarto de Rigolette, a fazenda de Bouqueval; preto – a alameda das Viúvas, a casa dos Ravageurs. Ele intervém ora em harmonia que reforça (a luz avermelhada e vacilante da lareira iluminava esta cena de pilhagem; do lado de fora os assovios do vento redobravam de violência), ora em contraste patético (vão executar a Martial: o sol se levantou radioso, resplandescente). O pardieiro ou o salão faiscante, a escuridão da meia-noite ou a bela manhã, o furacão uivante ou a fresca primavera, só existem em função dos personagens ou da cena que eles protagonizam. Da mesma forma para as mínimas coisas. Carregado de significado, cheio de intenções psicológicas como uma dinamite, o “coração romântico das coisas” não pára de explodir em piscadas de olhos. Sim, o ramo pascal atrás do relógio do tapete-franco, nos mostra que: a santidade na lama, Fleur-de-Marie no estrume. Sim, o extravagante fluxo de diamantes que cintila na noite sórdida da mansarda dos Morel, cintila na sua vez, é o mínimo que se pode dizer, de significado psicológico e social. O objeto age. No limite, isto mostra o objeto que não se contenta de ser significativo, como o boné de Rodolphe ou os restos da roseira de Fleur-de-Marie, mas o objeto que age verdadeiramente, seja por modificar, mais ou menos misteriosamente, um personagem, na forma do retrato obsedante de Thérèse Dunoyer, seja que, de forma grosseiramente mágica, ele indique, denuncie ou mate: a cruz de minha mãe e todos os seus equivalentes possíveis, o pequeno Espírito-Santo em lápis-lazuli que Rodolphe reconhece no pescoço de Chouette, as medalhas que servem como reconhecimento aos herdeiros nômades do Judeu errante. O realismo se torna facilmente policial. Tudo é característica. Tudo caracteriza.

São também as características que permitem de se fixar os personagens. Um ser se apresenta no início como um conjunto de traços exteriores perfeitamente legíveis: os cabelos, a cor da pele, a largura dos ombros, o olhar (muito importante, é a “janela da alma”), o tom de voz. O traje permite a identificação social; o traje, como o cenário, deve significar: venda nos olhos = pirata. Problema de estilo além da descrição de um personagem: aceita-se mais prazeirosamente os detalhes convencionais do que se percebe sua eficácia imediatamente. Os olhos são fixos, vidrados, injetados, viperinos; as vozes surdas, estridentes, alteradas, baixas, emocionadas, trêmulas, abafadas, terríveis, ameaçadoras, enfraquecidas, ameaçadoras, suplicantes; a tez acobreada pelo sol dos trópicos, lívida, pálida, sangüínea; o pé da heroína deve ser um pezinho delicado, elegantemente calçado; o pescoço, de admirável pureza; pele de brancura fascinante; o nobre ancião é rígido como um pinheiro, sólido como uma rocha, percebe-se logo o grande senhor habituado a comandar. Muito importante: as características particulares – estas também muito legíveis: as sobrancelhas do Judeu Errante muito negras se encontram acima do nariz de forma que ele parece ter a fronte riscada por uma marca negra. O que permite, pela exclusiva atenção a este detalhe (sempre a retórica do piscar de olhos: o leitor deve se sentir interessado, seu cúmplice), a identificação implícita.

Esta linguagem sem falha permite não somente reconhecer Rodolphe ou Djalma, mas conhecê-los. O físico determina o moral (ou vice-versa, pouco importa aqui), como – mesma regra como acima - por harmonia: a beleza física de Rodolphe e de Fleur-de-Marie garante a beleza de suas almas, a monstruosidade do Mestre da Escola e a da Borgnesse não mentem; seja por contraste: Mayeux é ao mesmo tempo santa e disforme; Cécily: uma esplêndida criatura satânica.

Percebe-se logo que o gênero evita cuidadosamente a sutileza psicológica. O que não significa que os seres sejam desprovidos de vida interior - ainda que na maior parte do tempo ela só se manifeste por atos. A gente raciocina. A gente medita. A gente se arruina. As tempestades num copo d’água, os corações insensíveis por abuso de reflexões melancólicas, a fúria de pensamentos que deixam para trás uma alma destruída, não se consideram mais. Mas, tudo isto, tempestades, furacões, contusões: simples esquemas. Arthur (12) fica dividido entre seu coração – “creia, ame, espere!” e seu espírito – “duvide, despreze, teme” – mas ele o está francamente. Ursule, a prima de Mathilde (13), confessando os “mistérios de sua alma”, só confessa nítidos contrastes sucessivos: um dia ela é uma mulher banhada em lágrimas, que geme, incompreendida..., no outro dia, mulher altiva, irônica, insolentemente coquete, e pregando as teorias as mais cínicas. E Arthur e Ursule são personagens complicados que não se originam exatamente do romance popular. Na maior parte do tempo, um personagem já fortemente caracterizado exteriormente, contém, apenas, alguns elementos psicológicos (um ou dois bastam para os personagens secundários cuja agitação necessária à multiplicidade descontínua da ação, deve ser imediatamente individualizada). Idéias básicas ou de preferência paixões essencialmente motivadoras. Não existem em número de trinta e seis. 1º) O Amor: mas não a lenta cristalização stendhaliana que desviaria um tempo precioso. O amor evidente: a) puro, lohengriniano, desde que ele se manifesta entre personagens “brancos”, desinteressado, inalterável, às vêzes tímido, sublime se ele é selvagem, tanto mais fiel quanto é impedido, chegando até à morte quando os obstáculos são insuperáveis ou sobre a união legal, sacramental; b) fatal quando ele nasce em um personagem negro, sensual, bestial, destruidor, aniquilando a razão, a vontade, o dever, a honra, provocando todas as perseguições e todos os crimes. 2º) O Ódio: obrigatoriamente intenso e geralmente unilateral; o herói branco não suja seu coração, raramente sua mão; não é ele que executa o traidor, é a Providência – incêndio, naufrágio, explosão; ou (mais refinado, mais satisfatório para o público amante de justiça imanente) é o próprio traidor que se executa, vítima de suas próprias maquinações, caindo em sua própria armadilha. 3º) A Cupidez: exclusivamente para traidores. 4º) O Patriotismo: (em tempo de guerra). 5º) A Ambição: em um homem trabalhador ou rico? Horrível, sem escrúpulo, devoradora, atingindo, por vêzes, a satânica vontade de poder que não se acalma a não ser pela onipotência universal; em um pobre? Nobre, virtuosa, alegria da velha mãe e da casta noiva.

Quanto a nuance, eis a inimiga. Não se age no cinza. Importam somente o negro e o branco que permitem os contrastes ou as maiores harmonias. Maniqueísmo fundamental: Abel e Cain, os bons são perfeitos, os maus abomináveis. Neste contraste a socialização se oferece complacentemente: os pobres são bons, os ricos, maus; acontece que o pobre seja criminoso e o rico caridoso. O dualismo não fica só aí, ele se concretiza na cena - daí sua força: o castelo se ergue em frente a uma cabana, o hotel de lustres iluminados, e extensos soalhos brilhantes se opõem ao complexo casebre-mansarda que tipifica o habitat popular.

Os grandes primeiros papéis são naturalmente de uma pureza paroxística, quase química (no negro ou no branco), de uma perfeição de arquétipo: ideal, quer dizer irreal – não são mais homens. Fleur-de-Marie, a fronte a mais pura, a tez a mais branca, os cabelos os mais louros, é a virgem (assim o quer o sentido figurativo do apelido) que a infelicidade superlativa mergulhou em uma corrupção superlativa, mas que uma inocência superlativa reserva para uma assunção superlativa. A heroína cinematográfica superlativa tem um nome duas vêzes branco, Pearl White. Quando o herói junta o branco e o negro, não é mistura simultânea, mas sucessão, e o mais freqüente do negro versus o branco: o herói resgata seus erros passados; a luta que travam Rodolphe, Arsène Lupin, o Chourineur serve de teste preliminar a sua salvação; o mal existe neles no estado de lembrança, fonte de mistério e de melancolia.

As pesquisas de estilo, as belezas descritivas, as sutilezas psicológicas, os afastamentos, são para o benefício único da ação. Tudo na expressão deve se submeter ao fato. Daí esta “brutalidade”, diante da qual recua uma George Sand. Conta somente o drama que consiste exemplarmente no duelo branco-negro, onde tudo é sempre questionado até o último segundo; sabemos que tudo isto se acomodará, mas como? É este momento que mobiliza todos os recursos dramáticos. No limite desta exigência não há mais lugar a não ser para o gesto: a rixa, a perseguição, o muro que se escala, a chave que se vira, o punho que se brande.

Gênero dramático onde cada folhetim aspira, por sua “queda de cortina”, pela “surpresa”, o romance popular é parente do teatro (14). Os contemporâneos de Sue o viram, denunciaram este parentesco com um desprezo ranzinza.

 

O folhetim-romance é somente um teatro móvel que vai procurar os espectadores ao invés de esperá-los. Mesmas imagens, mesmos sentimentos, mesmas idéias, mesma moral, mesmos dramas e freqüentemente mesmos autores. (15)

 

Mesma necessidade de segurar o público desde o levantar da cortina. Donde a obrigação de limitar a exposição ao estritamente indispensável:

 

Em uma bela tarde do mês de junho de 1840, ao soar às três horas em Saint-Philippe-du-Roule, um jovem andava em passos alertas... (16)

 

Era o mês de setembro de 1660, o rei já havia passado de seus vinte anos, a rainha-mãe e o cardeal beiravam, os dois, os sessenta anos. (17)

 

É a mesma forma de fixar o ambiente antes que a cena se desenrole. E quando os “atores” da cena teatralmente colocados pelo físico, o traje e o tom de voz, representam, há a prioridade do diálogo somente interrompido pelas indicações cênicas. Diálogo “teatral” (com freqüência na acepção pejorativa da palavra) que se escuta recitado por Marie Dorval: Eu também, elas me apavoram... O que é isto... porque este notário quis me demitir, eis-me aqui reduzida aos piores atos de violência, e contra ele eu nada posso fazer, nada, nada! ... Se... caso eu tivesse dinheiro eu poderia demandar contra ele! Oh! Jamais ! Jamais!... Não há necessidade de muita imaginação para ver a atriz torcer os punhos, morder a pelúcia de suas poltronas. O excelente folhetinista, mais que o excelente romancista, deve se revelar excelente diretor. Nisto, Dumas é superior a Balzac.

Drama? melodrama. Os personagens, mais ainda que “tipos”, são “papéis”. O traidor. O “cavaleiro” e seu “escudeiro” mais ou menos cômico (quando Murph (18), o lugar-tenente-confidente de Rodolphe, inglês bastante caricatural, assoa, seu nariz soa como trombeta). A vítima: a viúva, o órfão (Em O judeu errante elas são duas – Rose e Blanche, o que redobra o patético), a virgem mártir desta vez desdobrada em Os mistérios de Paris, em virgem não mártir – Rigolette, e em mártir não virgem – Fleur-de-Marie.

Romance popular e melodrama se dirigem ao mesmo público, que reclama primeiro, por emoções, muitas emoções, e variadas, e fortes.

 

 

... Então o senhor é feiticeiro, senhor, para me fazer passar tudo o que eu já passei em algumas horas, por ter me colocado no estado em que estou no momento. Fiquei arrepiada pelo pobre Germain... Depois meu peito se dilatou... Quando Rodolphe chorava sua jovem filha, eu chorei com ele; quando anunciaram a senhora d’Harville, eu tinha a respiração estrangulada, e enfim quando a bomba explodiu, eu não soube mais onde eu estava, eu não o sei ainda, eu chorei. E depois quando Murph se assoou como um trombone para esconder sua emoção, eu ri a passar mal. (19)

 

O arrepio, as lágrimas, o riso, a opressão: impressões meio físicas meio morais; o corpo fica profundamente mexido. E, ao contrário, como se vê, e quase no mesmo movimento: a multiplicidade dos tons permite não somente oferecer a um mesmo “espectador” uma rápida mudança emocional que contribui para agravar sua comoção, mas satisfazer ao mesmo tempo os apreciadores do trágico, do patético ou do cômico – quer dizer, respondendo ao maior número possível de pedidos particulares, se dirigindo a um público potencialmente total. (20)

O arrepio, as lágrimas, o peso sobre o peito; o bom leitor de folhetim reage como um bom personagem de folhetim – pelas características. É preciso traduzir. Nós encontramos sem surpresa as emoções cardinais do homem, velhas como ele, e sobre as quais já foi construída a tragédia: o terror e a piedade, a admiração.

O mistério se impõe, tão próprio a criar no leitor esta espera angustiada ao termo da qual a emoção explode em sua onipotência. Todo meio que o provoque é bom, a manutenção o aumenta. A começar pela simples advinhação, gentilmente pueril (o que importa? desde que ela aja): qual é este indivíduo que, às onze horas da noite, desceu de um carro etc. O puro e simples ponto de interrogação é o primeiro andar da obscuridade. Vem em seguida a obscuridade real – o canto sombrio; o subterrâneo; meia-noite, a hora do crime. Depois a obscuridade provocada: a máscara que suaviza a identidade (o lobo de veludo, o casacão cor de muralha, as luvas de borracha que despersonalizam a mão, os óculos verdes que suprimem o olhar) ou a máscara que propõe uma falsa identidade (a maquilagem, a barba postiça, o disfarce, os documentos falsos), que confere ao personagem uma fluidez inquietante, exemplarmente encarnada por Fantômas, Fregoli do crime, em todos os lugares ao mesmo tempo e em lugar nenhum, aqui sub-oficial inglês da guerra do Transvaal, lá grande industrial, alhures operário, velha dama, aristocrata, simultaneamente, parece. O disfarce não hesita a recorrer a experiências terríveis (é jogar em dois quadros): o Mestre de Escola se desfigura em ácido sulfúrico. Melhor ainda, o imortal Chéri-Bibi de Gaston Leroux se reveste, no exato sentido da palavra, com a pele do inimigo graças a uma extravagante operação cirúrgica, é difícil imaginar mais perfeita transfiguração. O mistério contamina a linguagem? Códigos abundam, todo sinal vale – este redondo, estes três pontos – todo objeto torna-se linguagem como para os selvagens – este galhinho quebrado... A gíria é código, também fluido. A linguagem ordinária recorre à poesia: certas frases se carregam de um significado esotérico, pode-se esquecer o célebre leitmotiv do Mistério do quarto amarelo: “O presbítero não perdeu nada de seu charme nem o jardim o seu brilho?”

O mistério despreza as aparências pela existência? Cascata de nascimentos obscuros, Fleur-de-Marie, Rouletabille, e todos estes bebês abandonados sobre o adro das igrejas (21) com ou sem sinal de reconhecimento potencial; formigamento de sociedades secretas, prefiguração de gangs, Main Rouge, Verte, apaches, contrabandistas, conspiradores políticos, os jesuítas. E a polícia (civil), o policial estando acima de tudo, para o público, um Senhor-que-se-disfarça. Ou, melhor que o policial: o detetive particular, a etimologia conservando o policial como responsável pela ordem na cidade (polis) enquanto ela reconhece no detetive aquele que detecta os enigmas, “que levanta os telhados para olhar o segredo dos quartos”. (22)

Fica, ainda, o mistério proposto não pela máscara ou pelo segredo mas pelo inexplicável: por que um tal que nós conhecemos bem, que não se camufla, que fala como todo o mundo, age assim? Enigma que pode, calcula-se, nos arrastar muito longe na noite das consciências. Mas, no limiar deste mistério, o romance popular que prefere se restringir aos fatos, para toda a investigação.

Sangue, assassinato, duelo, prisão, rapto: em um gênero onde a ação é o principal ponto chave, o terror nascerá da violência. Interiorizada, esta violência se torna delírio, loucura.

 

Passos rápidos se fizeram ouvir na escada; logo o doutor Baleinier, seguido da princesa de Saint-Dizier, apareceu na porta do quarto fúnebre.

A princesa, tendo tomado ciência, vagamente, naquela manhã mesmo, da morte do pai de Algrigny, precipitou-se a interrogar Rodin a este respeito.

Quando esta mulher, entrando bruscamente, viu o assustador espetáculo a sua frente, quando viu Rodin se contorcendo em terrível agonia, depois, adiante, iluminados pela lâmpada sepulcral, os seis cadáveres e entre eles o corpo de sua sobrinha e os de duas órfãs enviadas por ela à morte, a princesa ficou petrificada, sua razão não pode resistir a este grande choque. Após olhar, lentamente, ao redor, ela levantou os braços ao céu e deu uma gargalhada insana.

Ela estava louca. (23)

 

A morte triunfa, e, nestas circunstâncias, os cenários devem contribuir para aumentar a tenebrosa impressão. Todos os acessórios do romance negro estão presentes: subterrâneos, escadas secretas, esqueletos, venenos, tempestades, temporal noturno, espectros, correntes, ferrolhos, masmorras. Mas o “jogo negro”, caro ao folhetim, é, tão somente, a versão popular da perversão satânica cara ao romance negro como aparece em Salamandra (24) ou em El Gitano (25) – versão atenuada, pois a perversão, a sedução do mal (Szaffie (26), como Lucifer, é belo), a vertigem do medo voluptuoso são escamoteadas em benefício da violência repulsiva.

A inquietude (apimentada de curiosidade) e o terror excitam o leitor porque demolem sua terna tranqüilidade cotidiana. O folhetim se dirige a um público sedentário: inquietude e terror, destruindo a imobilidade, suscitando movimento e velocidade, com muito mais sucesso do que os veicula o romance-folhetim (gênero onde reinam o movimento e a velocidade), ajudam à evasão. Voltamos à mesma idéia. Exotismo, antes de tudo. A primeira, como a última palavra, volta à Aventura, que é um movimento perpétuo e perpetuamente fantasioso. No espaço? Mobiliza-se a geografia, os mares, as ilhas, as Américas, os verdadeiros ciclones e os verdadeiros Mohicans. No tempo? Mobiliza-se a história, as cruzadas, as guerras de religião, os mosqueteiros.

Mais hábil, mais moderno, é o romance de aventuras que, renunciando às facilidades do histórico ou do exótico, atualizando audaciosamente sua aventura no tempo e no espaço (hoje em dia em Paris), se obriga a mudar o esplendor da decoração e das vestimentas para os fatos. Obrigado a manter o lugar, o exotismo vaza, se mostra sob as aparências. A agitação desorientada é o crime que provoca – ou, mais comumente, tudo o que sai da norma, ocasionando a desordem, daí a intervenção da força social encarregada de restabelecer a ordem: a polícia. A literatura policial se enxerta normalmente do romance popular. O mistério e o terror se desabrocham aí como em terreno próprio. Forte terror, mesmo, desde que presente: nenhuma volta no tempo, nenhum afastamento no espaço nos protege. A aventura sacode o senhor fora do cotidiano, mas não o deixa fora. O refinamento vai consistir em inserir a aventura mais extraordinária no quadro mais ordinário.

 

O que o senhor pensaria de um contador que colocasse uma história de fantasma na avenida italiana, entre a Ópera-Cômica e Tortoni, e que, no lugar de escolher a meia-noite, a hora sagrada das lendas onde os mortos saem de seus túmulos, escolhesse meio-dia quando os habitués da Bolsa começam a aparecer na avenida para conversar sobre a alta e a baixa?  (27)

 

O fantasma da ópera, de Gaston Leroux, responde a esta pergunta. Meio-dia, a hora do crime, eis, talvez, uma das fórmulas do “romanesco” moderno. Porque desde que isto serve de máscara ao extraordinário, o cenário mais ordinário deixa de sê-lo. É pedir ao leitor que transporte para o cotidiano tudo que o envolve com um olhar novo, limpo de hábitos, insólito. Em outras palavras, é levá-lo a se tornar sensível, permeável ao fantástico social. Este fantástico moderno do qual a expressão não cessa de nos aparecer amplamente em Os mistérios de Paris e O judeu errante.

E que nada tem a ver com o realismo, ou o gentil populismo à maneira de Murger. O aspecto documentário dos Mistérios não deve iludir, trata-se também de outra coisa – que nós tínhamos farejado desde os primeiros escritos de Sue e a que nós nos chocamos fortemente nos Mistérios: o mito. A significação quase mágica dos objetos, o papel vivo representado pelo cenário, o culto ao angelical ao qual conduz a recusa do cinza, da nuance, da mediocridade na pintura dos personagens, dando força à objetividade pura e à psicologia corrente, obrigando a depassar o realismo. Na descrição das coisas e dos seres, há pelo próprio jogo do extraordinário fantasioso (que é excesso, em branco ou em negro), uma marcha em direção ao absoluto – resumindo: idealização. O que estaríamos tentados de chamar com Baudelaire: uma tradução lendária. (28)

Que existe uma geografia mitológica do romance popular, isto salta aos olhos. Em princípio em conexão com a geografia da aventura exótica: os mares (antes do mar, que é personagem); os continentes fabulosos, as Índias fantasticamente escondidas no fundo de uma estrada ao mesmo tempo maravilhosa e terrível, e que se desdobram, Índias Ocidentais, Índias Orientais, compreendidas, nos dias de hoje, pelas Américas (o plural parece necessário à aureola mística) como terra dos escravos, reino de fortunas misteriosas. São os continentes sombrios onde desaparecem, as regiões propriamente infernais de onde voltam, após um longo tempo de provações concretamente representadas pelos perigos da vida entre os selvagens ou no seio da natureza bruta, aqueles que havíamos dado como mortos, os náufragos, os forçados inocentes; e eles voltam como da morte, transfigurados, sabendo das coisas, como Orphée, e ricos, armados para fazer reinar a justiça. (29) No interior desta geografia, como lugares privilegiados, todos aqueles que exaltarão a solidão heróica: o cume da montanha, o coração da floresta obrigatoriamente virgem, e (o progresso técnico intervindo aqui, como aqueles que modificam nosso conhecimento do universo) o mais alto dos ares, o mais profundo dos mares, já o vazio inter-estrelar. Menção especial para a ilha, mundo fechado, isolado, laboratório pronto a todas as experiências sejam elas tentadas por Marivaux ou este doutor Moreau inventado por Wells. A ilha misteriosa por natureza e que, deserta, oferece uma solidão reforçada.

Deixemos os homens construir. A habitação que pode se fechar ao menor sinal, espetacularmente isolada no cume de uma rocha ou que a água de seus fossos transforme propriamente em ilha, misteriosa desde que tudo a protege dos olhares dos outros, ameaçadora desde que “forte”, acocorada sobre o tenebroso labirinto de seus subterrâneos, de seus poços, de seus lagos clandestinos, de suas masmorras – todos os degraus descendentes, todos estes abismos –, desconcertando até a angústia por todas as suas máscaras que são escadas secretas, quartos duplos, alçapões, portas falsas, falsas janelas, esta habitação, o castelo feudal, é uma presa destinada à mistificação. Ela atraí, inquieta, aterroriza mais fortemente que o convento, ele também fechado, misterioso, cheio de labirintos, mas cuja construção “não detém nenhum orgulho visível” (30) e cujo papel é mais dissimulado. Como excelente lugar para o romanesco popular, a cidade (mas não qualquer uma, a grande cidade moderna, Londres, Paris e New York, Chicago, Frisco desde o romance policial à americana e o filme de gangsters) ficou importante. Espaço superlativamente habitado e, portanto, idealmente oferecido à convergência das coincidências, ela atraí, ela inquieta, ela aterroriza. A cidade usa as mesmas armas que o castelo: adegas e sepulturas modernizam o tema das masmorras opondo-o, a mais, ao tema da mansarda sempre em alto grau, simbolizando a miséria honesta, o sórdido na pureza. Existindo, sobretudo, sob aparências, abaixo do nível normal da existência cotidiana, a cidade é labirinto ela mesma, mais ou menos falsa, nó de intrigas. Ela obriga aos deslocamentos – à aventura.

Como não evocar o palácio do corretor Cheval “galerias, terraços, escadas, corredores, pequenas torres sem exclusão de nenhuma sala” palácio que só existe para quem se desloca (31) (como toda cidade) e a viagem infernal de Jean Valjean nas “entranhas do Léviathan”? Esta palavra “entranhas” adverte. A cidade vive de uma vida animal. Ela respira, ela resmunga, ela cochila, ela sonha, a gente a desafia – a nós dois! – a repreende, a doma ou ela nos devora.

Prisões, necrotérios, catacumbas, esgotos, Notre-Dame, asilos, hospícios, a Cité, o Palácio de Justiça, a Grève, ilhas, rio ao mesmo tempo esgoto e fosso, hotéis secretos que a zona torna tão grandiosos no coração da multidão, e este gótico de Montfaucon sinistramente aureolado pelas lembranças da forca, e mais recentemente, graças a Gaston Leroux, este castelo na cidade-castelo: o Ópera, galerias sem fim, cinco andares de camarotes, de corredores, de lareiras, tantos sub-solos com alçapões a cada desvio, lojas de acessórios para Mil e Uma Noites, e, no mais profundo do magnífico edifício, as ondas escuras de um lago alucinante – Paris reina como capital da geografia mitológica do romance popular. É Paris que Fantômas transpõe; Paris que Arsène Lupin considera como o único teatro digno de suas explorações.

Fantômas, Arsène Lupin: à geografia mitológica corresponde uma fauna mitológica: A vítima: para a piedade. Para o terror, o monstro – entre outros, a mulher fatal, representando o mito popular do manto religioso, idealmente encarnada (perfeito contraste com Fleur-de-Marie) por Cecily, “negra sacudida pelo demônio” como diria Mallarmé, olhar tão “carregado de eletricidade sensual” (32) que fulmina magicamente, cabelos azuis, unhas “bistres”, armada de um dardo venenoso (punhal venenoso), dama negra mas curiosamente sublimada por uma cor de camélia, e que mata sua vítima enlouquecendo-a em delírio erótico. Para a admiração, o amor, o medo e os enternecimentos: o herói. Aquele que luta no lugar do leitor, aquele em que o homem médio se idealiza se purgando de sua mediocridade de gado submisso na servidão da grande manada. Indivíduo, ele se afirma frente à sociedade e freqüentemente contra ela – permanecendo fora da lei mesmo quando ele é o justiceiro, como Rodolphe e Arsène Lupin agindo à margem das leis e da polícia, como o detetive particular do tipo Sherlock Holmes rival do inspetor funcionário. Ele só pode ser solitário, se ele navega, que seja para a ilha deserta, se ele voa, bom para a pane no Saara, se ele escala um cimo, que seja o primeiro a pisá-lo. Herdeiro do santo anacoreta orando no deserto, ou do cavaleiro errante nas florestas, o herói pode levar a solidão até a virgindade. Não o distrai desta solidão seu auxiliar, seu escudeiro, notícias incertas, confidente balordo ou lugar-tenente divertido, e que não é mais do que um doméstico. É verdade que um doméstico nada mais é do que uma máquina com bom ou mau funcionamento, encontrando-se seu perfeito acabamento no escravo mudo, surdo, quer dizer, secreto, obscuro – mudismo e surdez tornando-se fisicamente visíveis se este escravo é negro. Os remadores negros de El Gitano, as mulatas de Morne-au-Diable, (33) o doutor negro de Rodolphe anunciam os robôs da ciência-ficção.

O herói não pode estar fora da lei comum desde que é por definição extraordinário, ideal encarnação do que o homem faz de melhor em cada setor: cavalheiro, campeão esportivo, extra lúcido. Ele goza de onipotência , seja comprando-a, moderno motor do poder mitologicamente representado pela fortuna ilimitada, como a de Rodolphe ou de Monte Cristo (ora tesouro fabuloso, ora riqueza nascida de uma invenção genial ou de uma herança complexa, ou, mais atualmente ainda, devida à indústria ou à transações na Bolsa – não mais o cintilar das esmeraldas aos montes, o brilho quente do ouro amontoado, mas títulos, documentos, como no Judeu errante), tenha ele o pedido à ciência, ao pó de pirlimpimpim, ao raio da morte ou máquina do tempo, à técnica, modernização do mito da magia: o herói-sábio retorna em proveito do Ingénieur, o mito de Prometeu.

Porque é disto, no final das contas, que se trata. Dono de sua aparência, o herói surge onde ele quer, como ele quer, como Júpiter. A princípio ele ignora a derrota (a angústia suscitada por cada episódio é agradável, podemos nos abandonar à inquietude com toda a tranqüilidade). Ele goza da “efervecência dionisíaca de uma energia eternamente disponível”. (34) Enfim: praticamente imortal, o herói recua os limites da atividade humana. Superman. Ubermensch. Armand Hoog identificou fortemente em Arsène Lupin um tipo de Zarathoustra parisiense. Se faz deus. Rodolphe é deus. O Judeu errante conhece até o sobrenatural dos deuses.

A mitologia colocada na obra no romance popular responde à sede do divino que não é sede de Deus, mas nostalgia de deificação no seio da sociedade particular da magia. A onipotência de Rodolphe, a ubiqüidade fluida de Arsène Lupin ou de Fantômas (hoje sustentadas por todo um arsenal de máquinas e armas tão científicas que dispensam, salvo aos olhos de uma minúscula pitada de especialistas, a feitiçaria pura) substituem os tapetes voadores, os abracadabras e os anéis de Gygès de contas. O leitor crê religiosamente em Rodolphe e em Fleur-de-Marie. Sua adesão, que é essencialmente mística, salienta a fé – ou mais exatamente as razões do coração que a própria razão desconhece. O salvamento de Rodolphe por Chourineur no segundo andar subterrâneo em Coeur Saignant no exato segundo em que o Sena vai engolir Rodolphe escapa à verossimilhança, mas para alcançar a verdade. Movimento, velocidade, arrebatamento do relato que nos mantém o fôlego, se juntando à paixão pela qual nós desejamos a intervenção inverossímel (exigência sustentada mais ou menos de forma clara pela certeza de que ocorrerá), o poder sobrehumano do herói em perigo reivindica tudo, justifica o milagre, o provoca. Ele vem. Está feito, a gente acredita – e isto porque a gente acredita. O romance popular não se coloca, em absoluto, no plano do racional banal, cotidiano, mas sobre o do milagre, e a gente se abandona ao infantil, porém tão vivaz prazer desta milagrosa, maravilhosa fantasia. Mas atenção: esta fantasia por mais extraordinária que seja não deve deslizar pelo irracional. O sobrehumano, não o desumano. As razões do coração, mas ainda razões – senão, todo o prazer é estragado, e nos consideram como crianças! O romance popular não é um conto de fadas. A explicação pode ser extravagante, hiper sutil, até inverossímel no entender do bom sentido medíocre (importa que ela o seja para satisfazer o desejo de evasão, seja do mágico, e alimentar a aura mitológica). Mas deve-se ter uma explicação. As excentricidades maiores se pintam de um “esmalte de casualidade”. (35) Cartesianismo vivo: é fabuloso, como no romance policial, por exemplo, que é delírio de explicação, onde tudo, mistério e prodígio, terminam por se alinhar tão racionalmente nas categorias do tempo e do espaço ordinários que é isto mesmo, este retorno à ordem, maravilhoso, que se torna milagre. Com Fantômas ou Arsène Lupin, o diabo substituiu o discurso cabalístico pelo Discurso do método, mas continuou sendo o diabo.

Porque a vida é antes de mais tudo estúpida, sabe-se, e Flaubert, romancista por excelência do anti-romanesco, construiu toda a sua obra sobre esta asneira. Por seu cartesianismo heróico e perverso, o romance popular protesta. Ele detesta o insignificante, não somente entendido em seu sentido de banal, mas no de não significativo. Ele recusa o absurdo. O castelo de Kafka não é seu castelo. A opacidade do “objetivo puro” o rejeita: isto não existe. Tudo no universo significa: o traje revela, as coisas conversam, por todos os lugares, as marcas, as impressões dos dedos, a mínima mímica ilumina – este clarão do olhar, este sinistro aperto de lábios, este estremecimento tanto mais significativo quanto involuntário. Não há personagem inútil: todos têm seu papel a representar ou sua parte a manter no concerto dos símbolos e dos mitos. A Loba (36) personifica “a influência funesta” por contraste com Fleur-de-Marie personificando “a influência benéfica”. O espaço utilizado pela geografia mitológica é cheio de significado – “metafísica dos lugares, são vocês que embalam as crianças”. (37) O tempo também: época fatal, espera mortal, aniversário fatídico, sexta-feira 13, corrida contra o tempo da qual A Volta ao Mundo em 80 dias oferece o mais belo exemplo. No dia 13 de fevereiro de 1832, os herdeiros Rennepont (38) devem se reunir, em Paris, para receber a fortuna; a cerimônia de posse de Fleur-de-Marie é fixada para 13 de janeiro e foi no dia 13 de janeiro que Rodolphe puxou a espada contra seu pai: ele foi punido em sua paternidade no mesmo dia em que ele pecou contra a paternidade. E o tempo não é mais precioso nas cidades onde os encontros se precipitam, onde “as séries temporais se misturam”? (39) Até o acaso, absurdo por definição, deixa de sê-lo: freqüentemente coincidência, sempre feixe de convergências trazendo, sem cessar, os personagens – uns em direção aos outros – “Rigolette, gritou Lorraine, veja como a gente se encontra” (40). O que aumenta a impressão de mundo fechado da cidade-castelo: o acaso citadino parece um acaso fechado enquanto o acaso marítimo seria um acaso aberto. De fato, este acaso significativo, não mais objetivo que o realismo significativo, não é mais acaso. Ele é Providência, se ele é branco.

 

 

Não somente Djalma, que vem de Java, Dagobert e as gêmeas que chegam de Saze, Gabriel, que volta da América, se encontraram, em um determinado dia, em um mesmo lugar, mas ainda – Oh Providência, eis a tua obra! – todos se salvaram e sozinhos, entre algumas centenas de passageiros! Isto é sorte!... (41)

 

Fatalidade, se é negro. O dedo de Deus ou Fatalitas! como o proclama a tatuagem dos forçados.

Maravilhosa explicação que não explica nada; quem justifica o milagre sem o demolir, acrescentando, ao contrário, uma coloração trágica. Logo, a explicação é estimada e ainda mais que permite toda a liberdade, e toda cena inesperada, portanto, a livre condução da ação.

E de “concurso inesperado de circunstâncias” passa a “fatal encontro” – ei-nos conduzidos ao ponto em direção ao qual irradiam todos os acasos centrípetos: o instante do desfecho. Desfecho satisfatório – a justiça reina por ter perseguido o personagem do mesmo passo solene que a fatalidade. A Justiça dos homens; senão a Justiça de Deus quando esta justiça que exige o desfecho se revela em oposição com aquela da sociedade contemporânea; ela tomará, então, a forma de uma última intervenção do acaso inteligente. Justiça que se apresenta como a nostalgia de um equilíbrio quase automático (eu assassinei, me assassinam), em concordância com a concepção popular que se faz dela (a balança, a lei de talião) e cujo reconhecimento (sob estes dois aspectos: a) papai – minha filha! b) você me salvou a vida, eu salvo a sua) e a vingança parecem as duas intervenções principais. Este último acerto de contas não coincide forçosamente com o final feliz. Fleur-de-Marie morre, o simpático Chourineur deve morrer, é triste, porém justo. Todos os herdeiros Rennepont morrem, menos Gabriel. O branco triunfa, não o rosa. A justiça, não necessariamente a felicidade. A justiça reivindica constantemente, mesmo após a morte ela exige sacrifícios e as vêzes mesmo o dos heróis – pronta a ressuscitá-los se o público os reclama para novas aventuras. A felicidade, ela, se satisfaz delicadamente com o status quo.

Vê-se como é normal a aliança do socialismo com o romance na qual trabalharam os escritores dos anos 1840. Para socializar o romance popular, basta a escolha das vítimas: a pequena operária, o pobre camponês, e carrascos: o rico, o patrão, o proprietário. O cavaleiro andante se confessará reformador. Nick Carter terá lido Fourier. A justiça será social. Sem deixar, contudo, de ser a justiça de Deus desde que Cristo é socialista. O romance social e socialista, do qual se esperaria que rejeitasse o herói em benefício do homem cotidiano, ratifica, ao contrário, o maniqueísmo, o otimismo e mitologias, que ele enriquece somente de um mito suplementar: o Povo, e que ele colore de um misticismo de ressonância cristã – paraíso, inferno, resgate, caridade, amor ao próximo. Mas o Paraíso é aqui. Questão de tempo. O final feliz pertence aos amanhãs que cantam.

O final feliz intervindo no estado atual das coisas – o rosa – não se torna uma regra do universo romanesco popular a não ser quando as massas populares tenham atingido os níveis psicológicos da individualidade burguesa. O romance visa então a acalmar, mais que a fantasiar. O mundo vai bem desde que Ela e Ele são felizes e têm muitos filhos. A psicose do heroísmo recua frente ao desejo de verossimilhança que facilite a identificação. A credibilidade, não mais a fé. O leitor não assiste mais, feliz, constrangido, aos feitos inacessíveis de um semi-deus evoluindo em um outro mundo, mas pequeno-burguês, participando de uma classe em constante ascenção social, ele começa a acariciar sonhos realizáveis – por que não eu? O aburguesamento do imaginário conduz ao bovarismo. O herói se aproxima. Dos homens, não dos heróis. Ou uns heróis gentilmente humanizados: eles têm fraquezas, e até imperícias; eles riem, têm bom humor – o que não os impede de ser belos, fortes, milagrosamente destros no revólver, cavaleiro divino ou automóvel bólide. A busca da onipotência se altera na conquista de uma mulher ou na procura de uma posição social (42), o herói justiceiro no amante brigão, a mulher fatal em mulher da vida, o traidor no rival, o romance popular no romance de amor. E como este herói poderia ser eu, sou eu, compreende-se que eu me dedique mais à consolação que à purificação, ao final feliz “guimauvoïde” mais que ao branco trovoada da Justiça: a fatalidade se faz providencial. Em breve, o romance popular aburguesado se afasta do imaginário para se aproximar do real (43). As forças “milagrosas”, a fatalidade mesmo providencial, são substituídas por causas plausíveis, por motivações psicológicas. Inclinação à qual Sue – levado pela crítica burguesa de um Nettement – cedeu em O judeu errante: quando a ação sobressaía (um segundo prazo é oferecido milagrosamente aos herdeiros perseguidos pelos jesuítas), Sue renuncia à violência e faz intervir diabolicamente Rodin unicamente pelo jogo de paixões habilmente manejadas.

 

Há somente uma prisão da qual não se foge: a morte. Mas é preciso que esta morte seja natural, que nenhuma desconfiança possa aflorar. O reconhecimento do amor feliz pode levar aos últimos limites. Horríveis decepções vos arrastam ao suicídio ou à loucura. Os excessos alcoólicos ou sensuais vos conduzem à agonia. Eis as alavancas sobre as quais é preciso agir com os adversários dos quais nós conhecemos as qualidades e os defeitos. A ambição, o amor, o ciúme, a calúnia, eis minhas armas e eu vou ser ajudado por este terrível flagelo que se aproxima – o cólera. (44)

 

Desde então, onde saciar a sede de milagre? Eis toda uma humanidade lançada em direção a máquinas de moedas e a lamentável leitura de revistas especializadas. Ao contrário do verdadeiro romance popular repelindo o medíocre em nome de uma justiça purificadora, o romance popular aburguesado, com final feliz obrigatório, se torna uma ferramenta de conservantismo social: tudo não é, no final das contas, e apesar de tudo, para o melhor, no melhor dos mundos? E satisfaz por ter triunfado por meio de pessoa interposta, o homem médio volta ao cinza e à sua servidão, aliás, persuadido de que a solução encontrada pelo herói vale apenas para ele, que não há solução coletiva, que é preciso sorte ou Providência.

Este retorno à humanidade medíocre, ao merceeiro, à Bovary, nos indica que deixamos o verdadeiro universo do romance popular. Recusa do merceeiro: como o dandy Sue continua fiel a ele mesmo! Nós não deixamos o romantismo: o romance popular veiculado pelo folhetim é, em suma, a estereotipificação, por esclerose, do herói, das forças, das peripécias, dos cenários, dos desfechos românticos. A tempestade estourando no instante do assassinato, é Lamartine cantando a comunhão que liga o outono à sua melancolia; todo Hugo é em negro e branco; todo Balzac se alimenta do fantástico social. O romance popular folhetinesco desvia do teatro em seu proveito o trágico romântico que é, ele mesmo, degenerescência do trágico. As forças obscuras – representadas pelo capricho dos deuses, que é tentativa de explicar o absurdo – se chamam poder misterioso. O sonho voltou a ter importância, e logo alimentará Freud. E a Fatalidade: Chéri-Bibi assistindo a uma representação de Édipo rei grita no espetáculo do filho de Laïos abandonado por todos, brinquedo dos deuses: “Eis um tipo no meu gênero”. (45) Rouletabille, filho da Dama de negro e do Assassino do quarto amarelo, vê, por fatalidade, seu destino desviado em direção do destino de seu pai e do de sua mãe: ele luta por sua mãe, contra seu pai. Mas descobre-se onde o trágico degenera: Rouletabille não se entende com sua mãe, não mata seu pai. Entre os gregos também a Justiça fulmina: mas em forma de zombaria saudando o triunfo do absurdo. Édipo é um criminoso inocente. No romance popular há degenerescência por otimismo: não se imagina que possa haver, como entre os Gregos, uma justiça negra.

Sem dúvida, convém considerar o romance popular folhetinesco (e seus sucedâneos atuais, o romance policial e a ciência-ficção) como uma tentativa de resposta, proposta em meados do século XIX graças ao advento de um poderio industrial moderno (a imprensa), ao caráter épico (Baudelaire chama de “heróico”) da vida moderna? Poema “primitivo” de significação a qualquer preço; visão exaltada, cativante; canto de uso das multidões; impregnado do maravilhoso “como uma esponja imersa em pleno céu”, (46) é epopéia de nossos tempos. Entre Maldoror e Fantômas, uma mão para Sade, outra para Marx, saudando ao longe o Grande Guignol e o cinema surrealista, o folhetim “à Eugène Sue” responde afirmativamente – ainda que desastradamente – à pergunta “principal, essencial”, que faz Baudelaire para saber se sua época possui “uma beleza particular, inerente às novas paixões”. (47)

 

NOTAS

(1) Louis REYBAUD. Jerôme Paturot à procura de uma posição social. Paris, 1842.

(2) Fonds Sue. Biblioteca histórica da cidade de Paris.

(3) Atribuído a Ponson du Terrail. Citado por Régis Messac, in: O novo detetive e a influência do pensamento científico. Paris, 1929.

(4) Eugène SUE, O judeu errante.

(5) Eugène SUE, Os mistérios de Paris.

(6) Eugène SUE, Os mistérios de Paris.

(7) Eugène SUE, O judeu errante.

(8) S. Samuel de SACY, Introdução a Esplendor e misérias das cortesãs. Clube do Melhor Livro, Paris, 1958.

(9) Sobretudo quando, como para Sue, a previsão, o plano matam a inspiração. São a incerteza, a confusão, que excitam as faculdades criadoras: o autor não sabe mais do que seus personagens, aquilo que vai lhes acontecer.

(10) PHILIPON e HUART, Paródia do judeu errante, Lamento Constitucional em dez partes, Vinhetas por Charm, Paris, 1844.

(11) Théophile GAUTIER. O museu das famílias, 1842.

(12) In Arthur, de Eugène SUE.

(13) In Mathilde, de Eugène SUE.

(14) Nós diremos hoje: cinema, mais próprio a se acomodar à regra das três multiplicidades e graças a ele o movimento e a velocidade aparecem na vida. Pearl White (pronunciado à francesa Perle Vite, o nome sublinha este outro aspecto da heroína) “age por agir” *. [*Aragon . Anicet ou o panorama.]

A televisão vai reclamar sua chance ao filme de episódios, e conseqüentemente a um cinema popular que seria, enfim, o equivalente dos grandes romances populares do século XIX?

(15) A.NETTEMENT, Estudos críticos sobre o romance-folhetim, Paris, 1845.

(16) In Os mistérios de Paris, de Eugene SUE.

(17) Paul FÉVAL, O capitão satã.

(18) In Os mistérios de Paris.

(19) Fonds Sue

(20) Cf. o que diz Edgar Morin do cinema, in As estrelas, Éditions du Seuil, Paris.

(21) O que corresponde a uma realidade social da época – como o rapto pelos piratas, geralmente barbarescos desde que mediterrâneos, tão cômodo para o romance – e o teatro (vide Molière) – é uma realidade social da Antigüidade, da Idade Média, do XVI e até do XVII séculos.

(22) Michel CARROUGES, Os tabuleiros de dama da sorte, in Cadernos do Sul, 310. Os números 310 e 317 dos Cadernos do Sul são de máxima importância para quem se interessa pelo romance-folhetim, pelo romance negro, à mitologia moderna. Este estudo lhes deve muito.

(23) Eugène SUE, O judeu errante.

(24) De Eugène Sue.

(25) De Eugene Sue.

(26) In A Salamandra, de Eugene Sue.

(27) A. NETTEMENT, op. cit.

(28) BAUDELAIRE, Os pintores da Era Moderna, cap. V. citado por Roger Caillois, O mito e o homem, Gallimard.

(29) Jean TORTEL, Esboço de um universo trágico, in Cadernos do Sul, 310.

(30) Jean ROUDAUT, As habitações no romance negro, in Crítica, ago.-set. 1959.

(31) Cf. tudo o que diz Jean Roudaut do Castelo negro. Op. cit.

(32) Eugène Sue, Os mistérios de Paris, VII parte, cap. XIII “Luxurieux point ne seras.”

(33) Romances de Eugène Sue.

(34) Armand HOOG, O Complexo de Lupin, in La Nef, julho 1948.

(35) Samuel de SACY, op. cit.

(36) In Os mistérios de Paris.

(37) ARAGON, O camponês de Paris.

(38) In O judeu errante.

(39) Jean ROUDAUT,op.cit.

(40) In Os mistérios de Paris.

(41) PHILIPON e HUART, op.cit.

(42) Jean TORTEL, op.cit.

(43) Edgar MORIN, op. cit.

(44) Eugène SUE, O judeu errante.

(45) [ilegível] e P. Marty, Os terríveis.

(46) ARAGON, O camponês de Paris.

(47) BAUDELAIRE, Salões de 1846, XVIII: “Sobre o heroísmo da vida moderna”.

 

                                                                        

 

                                          

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